A protecção infantil em Angola: Retórica vs. realidade – Lucas Pedro
A protecção infantil em Angola: Retórica vs. realidade - Lucas Pedro
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A propósito do Dia Mundial contra a Agressão Infantil, celebrado na passada terça-feira, o Presidente da República, João Lourenço, dirigiu um apelo às famílias e aos actores sociais, incitando-os a garantir a protecção das crianças.

Embora as palavras do Presidente sejam nobres e necessárias, surge a pergunta inevitável: está o Governo realmente a cumprir com o seu papel na protecção das crianças?

A realidade nas ruas de Angola pinta um quadro sombrio e preocupante. Em várias partes do país, é comum ver crianças a vaguear pelas ruas, mendigando e procurando restos de comida nos contentores de lixo.

Muitas destas crianças, empurradas pela miséria e pela falta de opções, recolhem materiais ferrosos para vender, numa tentativa desesperada de saciar a fome. Este cenário é uma acusação directa às políticas governamentais que falharam em garantir um ambiente seguro e nutritivo para estas crianças.

Adicionalmente, a criminalidade juvenil é outro flagelo que decorre das condições precárias em que muitas crianças vivem. Forçadas a enveredar pelo crime como meio de sobrevivência, estas crianças enfrentam um destino trágico. Enquanto membros do Executivo desviam milhões de dólares dos cofres públicos impunemente, estas crianças são implacavelmente perseguidas e muitas vezes executadas pela Polícia Nacional.

Esta dualidade é uma demonstração clara de um sistema que favorece a impunidade dos poderosos enquanto sacrifica os vulneráveis.

A exploração infantil nas empresas, particularmente nas geridas por chineses, é outra mancha no cenário de protecção infantil em Angola. Crianças são tratadas como escravas, sujeitas a condições de trabalho desumanas, com a complacência de membros do Governo. Estas práticas são um reflexo do fracasso do Estado em proteger os seus cidadãos mais jovens e indefesos.

Nas zonas rurais, o problema assume outra dimensão. A pobreza extrema força as crianças a abandonarem as escolas para ajudar os pais nos campos ou a venderem produtos para garantir a comida na mesa. Esta realidade, amplamente conhecida, é uma barreira ao desenvolvimento e à educação das crianças, privando-as de um futuro melhor.

No seio das famílias, a situação não é menos alarmante. O Instituto Nacional da Criança (INAC) frequentemente reporta casos de abusos sexuais perpetrados por familiares próximos – pais, tios, irmãos, primos e até vizinhos. Estas atrocidades revelam uma falha profunda no sistema de protecção e apoio às vítimas, que deveriam encontrar segurança e amparo justamente nas suas próprias casas.

Na sua mensagem no Facebook, o Presidente João Lourenço afirmou que nenhuma nação pode prosperar sem cuidar das suas crianças. Exortou à consciência e acção de famílias, lares de acolhimento, escolas, igrejas e agentes da ordem para garantir a protecção dos mais vulneráveis. Contudo, a discrepância entre as palavras e a realidade no terreno é gritante.

A responsabilidade da protecção das crianças não deve recair apenas sobre as famílias e outros actores sociais. É imperativo que o Governo desempenhe um papel activo e decisivo. Para tal, é necessário um conjunto de acções concretas e eficazes que garantam a segurança, a saúde e a educação das crianças.

Primeiro, o Governo deve investir em programas sociais que abordem a pobreza extrema, oferecendo às famílias os recursos necessários para cuidar adequadamente das suas crianças. Isso inclui garantir o acesso a alimentação, moradia e cuidados de saúde básicos.

Em segundo lugar, é essencial que haja um reforço do sistema educacional. As crianças devem ter acesso a uma educação de qualidade que as prepare para um futuro melhor. Isso não apenas proporciona oportunidades de desenvolvimento, mas também mantém as crianças longe das ruas e dos perigos que nelas se encontram. Além disso, programas de apoio psicológico e social devem ser implementados para ajudar as crianças que já foram vítimas de abuso ou exploração.

A criação de centros de acolhimento e protecção para crianças em situação de risco também é uma medida urgente. Estes centros devem oferecer um ambiente seguro e acolhedor, onde as crianças possam receber cuidados, educação e apoio emocional. A formação e a capacitação dos profissionais que trabalham com crianças são cruciais para garantir que estas recebam o tratamento e o apoio adequados.

Outra área que necessita de atenção imediata é a implementação de políticas rigorosas contra a exploração infantil. O Governo deve garantir que as leis contra o trabalho infantil sejam estritamente aplicadas e que as empresas que exploram crianças sejam severamente punidas. A cooperação internacional também pode ser benéfica, especialmente com países e organizações que têm experiência e recursos para combater a exploração infantil.

O sistema de justiça deve ser reforçado para garantir que os abusadores de crianças sejam rapidamente identificados e punidos. A protecção das vítimas deve ser uma prioridade, oferecendo-lhes abrigo, apoio psicológico e assistência legal. A criação de linhas de apoio e de denúncia, acessíveis a todas as crianças e famílias, pode ajudar a identificar e a combater os abusos de forma mais eficaz.

Por fim, a sensibilização e a educação da sociedade como um todo são fundamentais. Campanhas de informação devem ser realizadas para aumentar a consciência sobre os direitos das crianças e a importância da sua protecção. As escolas, igrejas e outras instituições comunitárias podem desempenhar um papel importante na disseminação desta mensagem e na criação de uma cultura de protecção infantil.

O Dia Mundial contra a Agressão Infantil deve ser mais do que uma data para discursos eloquentes. Deve ser um momento de reflexão e acção concreta. Sem um compromisso verdadeiro e sustentado por parte do Governo e de toda a sociedade, as palavras continuarão a ser meras promessas vazias, e as crianças continuarão a sofrer as consequências de um sistema que falha em protegê-las.

Em conclusão, é essencial que o Governo angolano traduza as palavras em acções reais e tangíveis. A protecção das crianças não é apenas uma questão de justiça social, mas uma necessidade para o desenvolvimento sustentável e o futuro da nação.

As crianças são o recurso mais valioso de qualquer país, e a sua protecção deve ser uma prioridade absoluta. Se não agirmos agora, estaremos a comprometer o futuro de toda uma geração e, por extensão, o futuro de Angola.

*Jornalista, jurista, Defensor dos Direitos do Consumidor e Activista dos Direitos Humanos

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