Ernesto Vilhena, o senhor dos diamantes de Angola
Ernesto Vilhena, o senhor dos diamantes de Angola
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Durante quase cinco décadas, liderou a maior empresa das antigas colónias, que ocupava, em Angola, o equivalente a um terço do território português. Com um salário milionário, criou uma das maiores coleções de arte do País, mas morreu sem deixar dinheiro no banco. Teve várias polémicas com Salazar, que chegou a visitá-lo em casa.

Era a partir de Lisboa que se decidiam as renovações de contratos na maior e mais importante empresa de todo o império colonial português, a Companhia de Diamantes de Angola (Diamang). E a última palavra cabia sempre a Ernesto Jardim de Vilhena, que durante 47 anos liderou aquela que chegou a ser uma das cinco maiores produtoras de diamantes do mundo.

Quando havia reuniões, era normal o comandante fazer-se esperar. E havia pelo menos uma razão para isso, conta à SÁBADO José de Sá, que, tal como o pai e o avô, trabalhou muitos anos na Diamang, em Angola.

“Um antigo funcionário, que ainda é vivo, contou-me que, quando chegou, o contínuo lhe disse: ‘Sr. Engenheiro, sente-se um bocadinho enquanto espera’. Como ele não estava com vontade de se sentar, continuou de pé. Pouco depois o contínuo voltou a sugerir-lhe que se sentasse. E ele voltou a não o fazer. À terceira foi mais claro: ‘Sr. Engenheiro, tem que se sentar porque o comandante Vilhena gosta muito que se levantem quando ele entra’. Era um momento de terror”, acrescenta José de Sá.

“Porque além de decidir se os funcionários continuavam na empresa, Vilhena definia também o novo salário e o eventual prémio de renovação de contrato.” E o normal era renovar – até porque nunca houve pessoal a mais para um gigante que entre 1917 e 1975 chegou a ocupar o equivalente a um terço de todo o território de Portugal continental, explorava diamantes em 90% de Angola e teve, no seu auge, 23 mil trabalhadores. Havia, no entanto, exceções.

“Quando lhe contaram que um engenheiro branco tinha tido um caso com a mulher de outro engenheiro, o contrato não foi renovado. O escândalo punha em causa a disciplina e a hierarquia”, acrescenta José de Sá, e Vilhena tinha os seus informadores, sabia tudo o que se passava em Angola.

A Diamang era um dos territórios que o comandante controlava, a maior parte das vezes a partir do seu escritório em Lisboa, no edifício onde funcionava a sede do mais importante acionista português da empresa, o Banco Burnay (do qual Vilhena foi, também, e durante 25 anos, presidente).

O outro território que geria, e que se transformou na sua grande obsessão, ficava na Rua de São Bento 183 a 187. Na sua casa, em Lisboa, com 50 divisões, guardava uma coleção de arte como não houve nunca igual no País: era composta por 65 mil objetos (o Museu Nacional de Arte antiga tem 48 mil), incluindo milhares de estátuas, tapetes, móveis, retratos, santos, livros e até leques. Obras que se acumulavam pelas salas, garagens, sótão e jardim, do chão ao teto.

Construiu-a com um dos melhores salários portugueses, que até Salazar considerou demasiado elevado – “houve anos em que chegou a ganhar 2 mil ou 2.500 contos [hoje mais de um milhão de euros]”, escreveu o ditador nos seus diários. Dinheiro que desapareceu com a sua morte, porque para Ernesto Vilhena a fortuna nunca foi um fim em si mesmo. Esta é a história do homem que se eternizou como o Senhor Diamante. Cuja coleção de arte alimentou leilões durante 40 anos e que recebeu, em sua casa, António de Oliveira Salazar, mas também os maiores empresários do mundo, como os herdeiros Oppenheimer.

Uma fortuna em diamantes

Ernesto Vilhena nasceu a 4 de junho de 1876, em Ferreira do Alentejo, a terra do pai. Foi o terceiro filho de Júlio Marques de Vilhena e de Maria da Piedade Leite Pereira Jardim. Fez, desde sempre, parte de uma elite: o pai, advogado, montou escritório em Lisboa no ano em que o filho nasceu, e foi, mais tarde, ministro da Marinha e do Ultramar, duas pastas determinantes num País com colónias ultramarinas; a mãe era filha do Visconde de Monte São, uma das primeiras influências na obsessão do comandante pelo colecionismo – Manuel dos Santos Pereira Jardim acumulava minerais e conchas.

Nos primeiros anos de vida, Ernesto viveu com os avós maternos numa propriedade da família (havia várias) na Lamarosa e frequentou a escola primária em Tentúgal.

Seguiu-se a escola politécnica e depois a escola naval, que o levou à primeira de muitas e longas viagens por África, onde em 1910 começou a assumir funções de destaque em empresas. Abandonou-as brevemente em 1917, quando foi nomeado ministro das Colónias.

“Sai do Governo em dezembro de 1917 e em janeiro de 1918 entra para o Banco Fonsecas & Burnay, como diretor da sucursal de Angola. Em 1919, assume o cargo de administrador-geral da Diamang”, explica José de Sá, uma empresa feita dois anos antes num terreno isolado e inóspito, que não tinha outra solução senão bastar-se a si própria, escreveu Vasco de Sá, pai de José, no livro “A Lunda… Os Diamantes… A Endiama”:

“As estradas eram picadas, as pontes eram raras e provisórias. Muitas vezes eram os próprios viajantes quem as reparava, reforçava ou mesmo improvisava no momento em que era necessário atravessar o rio. E não era raro ser necessário esperar o abrandamento da cheia, acampando durante dias.”

A história da Diamang começa em 1907, quando os colonos belgas descobrem uma pedra preciosa no Dundo e mandam analisá-la na Bélgica. Dois anos depois, conta José de Sá, percebem que se trata de um diamante.

“Os geólogos sabem que um diamante nunca vem só e começam a procurar mais, mas à medida que seguem para Norte, passam a fronteira para o lado português. Era ali que estava a maior parte dos diamantes e os belgas percebem que têm que fazer um acordo com Portugal.”

É assim que nascem, primeiro a Pema (Pesquisas Mineiras de Angola), e depois a Diamang, que começaram por ser lideradas pelo militar Joaquim Paiva de Andrada. Nos contratos, já negociados por Vilhena, a maioria dos lucros (primeiro 40%, depois 50%) fica para o Estado português.

Mais: “A Diamang emprestava dinheiro a juros muito baixos a Angola. Muitas das obras públicas portuguesas feitas lá, incluindo barragens hidroelétricas, foram financiadas por esses rendimentos.” De acordo com as contas de José de Sá, a Diamang chegou a ter receitas equivalentes hoje a 750 milhões de euros, cerca de metade lucros.

Até 1966, o comandante foi pelo menos sete vezes ao Dundo, revelam os seus diários e cadernos de viagens, consultados pela investigadora Maria João Vilhena de Carvalho para a tese “A Constituição de uma Coleção Nacional”. As Esculturas de Ernesto Vilhena. Apesar de as estadias se prolongarem por vários meses, às vezes um ano, há poucas imagens dessas visitas. Porque, dentro da Diamang, não era fácil fazê-lo. “Até aos anos 60, era proibido fotografar e filmar, por causa do processo mineiro, mas alguns faziam-no às escondidas”, explica José de Sá.

Era o caso do biólogo Eduardo Luna de Carvalho, conta o filho David. “Durante a última estadia do comandante no Dundo, o meu pai fez um filme com imagens de costas ou a ¾ do comandante, que estava a visitar a barragem e a estação hidroelétrica. No diário do meu pai vem a anotação de um outro prevaricador! Chegou a 6 de dezembro de 1956 e partiu a 2 de abril de 1957…Visitou as minas, o que muito raramente acontecia, e a capital do distrito, mas recusou ficar na casa mais luxuosa do Dundo, a K18, casa do diretor-geral.”

A vida privilegiada no Dundo

David Luna de Carvalho nasceu no Dundo, uma espécie de Suíça africana, com casas de piso térreo, algumas com pequenos jardins e anexos, numa primeira fase rodeadas apenas de escritórios, oficinas, hospitais, farmácias e igrejas. A partir dos anos 30 construíram-se courts de ténis e piscinas, passou a haver cinema, ringue de patinagem e aulas de equitação – a que só os brancos tinham acesso.

“Eu era um copinho de leite, um dundinho, só saía do Dundo quando vinha a Portugal e tinha que ir a Luanda apanhar o barco. Achava extraordinário ver casas em cima de casas, elevadores, nada disso existia no Dundo. Até vir a Lisboa, também nunca me tinha apercebido que havia brancos pobres”, conta David Luna de Carvalho.

“Os funerais passavam todos pela rua onde eu morava e na altura das chuvas havia muitos casos de gente que morria queimada, com raios. Nunca eram europeus, porque esses tinham para-raios”, explica a propósito da segregação que sempre sentiu. Nas minas, onde o trabalho era mais duro, os africanos passavam longas temporadas sem nunca saberem quando iam sair.

Mas, mesmo entre os brancos, a propriedade privada era uma miragem. As casas – para solteiros ou famílias – eram da empresa, tal como tudo o resto. “Em 1969, quando saí de lá, só conhecia duas pessoas com carros privados. A Diamang fornecia tudo e era tudo da Diamang, até os talheres”, conta José de Sá, que cresceu em Andrada, a zona central das máquinas e da produção, a 90 km do Dundo.

“O meu avô era técnico das locomóveis e o meu pai era eletricista. Morávamos em frente às oficinas e, quando havia avarias, era normal chamarem o meu pai a meio da noite”, conta. Entre as duas aldeias, a distância era muito maior do que os 90 km físicos de separação.

“A Diamang tinha fronteiras. Era proibido entrar sem autorização e, mesmo para ir de uma povoação à outra, tinha que se pedir autorização. Também não havia dinheiro, só requisições, que eram debitadas no salário”, descreve.

Todos os trabalhadores recebiam, gratuitamente, a chamada “ração”, com carne, legumes, fruta, e outros bens essenciais. “Depois, havia coisas que se podiam comprar no armazém, fruta enlatada, por exemplo, que vinha da África do Sul. Entregava-se a requisição e no fim do mês descontavam-nos do salário. Não havia dinheiro para não se poder comprar diamantes aos indígenas, para desincentivar o tráfico.”

Com o início da guerra em Angola, em 1961, a Diamang passou a ter um exército privado, com duas autometralhadoras. Três anos depois, a PIDE instalou-se na Lunda. “Vigiava os brancos que eram de esquerda e apreendia livros de Sartre e de outros autores que apareciam no armazém”, descreve José de Sá.

O investigador Valentim Alexandre contou ao Público, em 2005, que a dada altura Vilhena escreveu uma carta a Salazar a queixar-se do romance Viragem, de Castro Soromenho, que criticava as condições de vida na Lunda dos trabalhadores africanos. “O episódio acabou com Salazar a mandar fechar a editora”, disse.

Enquanto liderou a Diamang, Ernesto Vilhena manteve uma relação próxima com Salazar. É, aliás, mencionado 23 vezes nos diários do então presidente do Conselho. Mas a proximidade não significava ausência de discórdias. “O Vilhena, na intimidade, considerava Salazar um pacóvio”, explica Maria João de Carvalho.

Porque “o cosmopolitismo que de alguma forma marcava a sua vida não tinha nada a ver com a vida fechada de Salazar”. A 3 de novembro de 1948, num dos diários, escreveu: “Não chego a compreender como é que um chefe de governo possa governar e administrar um País que não conhece, porque, digam o que disserem, ele conhece menos este país e os homens que o povoam do que qualquer de nós. O isolamento a que se vota, o horror a tomar contacto com o mundo, em geral, não podem deixar de falsear a sua maneira de ver, e de apreciar as coisas e as pessoas. Ele comanda; que sempre foi assim.”

O projeto da lapidação

Além da Diamang, Vilhena era administrador e acionista de várias outras empresas coloniais. E foi ele quem decidiu, por exemplo, criar a Dialap. “A lapidação corresponde a 20% do valor do diamante. No tempo do Vilhena, os belgas é que lapidavam, em Bruxelas e em Antuérpia. Depois da II Guerra, o Vilhena quis montar uma lapidação em Portugal”, recorda José de Sá.

A Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes foi constituída a 31 de dezembro de 1957, com 10 acionistas, que incluíam os Estados português e angolano, vários bancos, a Diamang e o próprio Ernesto de Vilhena, que tinha uma participação pessoal. “Todavia, decorrido o ano de 1958, o alvará de instalação industrial não fora ainda atribuído.

Em janeiro de 1959, em carta dirigida a Salazar, Ernesto Vilhena, presidente da Sociedade, dá nota do desagrado quanto à demora com que o Estado protela a emissão de alvará para a instalação desta indústria”, exigindo um conjunto de condições e garantias (isenções de impostos, por exemplo) que assegurassem a sua viabilidade financeira, escreve Deolinda Folgado em Dialap – o contributo de uma fábrica de lapidação de diamantes na modernização de Lisboa. Salazar demorou, mas em 1959 acabou mesmo por conceder o monopólio da lapidação de diamantes à Dialap. A empresa tinha sede em Lisboa e 500 trabalhadores (mas espaço para 2.500).

Foi um dos últimos projetos de Vilhena, que em 1959 tinha já 82 anos. E a idade foi precisamente outra divergência com Salazar. “Havia a ideia, partilhada por muitos, da necessidade de encontrar um administrador mais jovem”, explica Maria João de Carvalho.

E Vilhena nunca achou que fosse o momento certo de sair. Dois dias antes de fazer 77 anos, escreveu nos seus diários: “Digo-lhe [a Sá Carneiro, funcionário superior da Diamang] o que penso sobre a forma de efetuar a minha substituição na direção da Companhia quando eu pensar em me retirar d’ella.”

Outra discórdia aconteceu quando deixou de se sentir apoiado nas disputas que manteve com vários governadores de Angola, que queriam pôr fim ao monopólio da Diamang. “Com 90 anos já feitos, gasto, cansado e doente, farto de suportar – sem nenhum auxílio oficial – as prepotências e disparates do atual Governador Geral de Angola, venho pedir a Vossa Excelência para ser substituído no exercício do cargo que desempenho na Companhia de Diamantes.”

A resposta “mostra Salazar cada vez mais fazendo ouvidos de mercador para Vilhena: deixando para trás seu tom geralmente comprometido e de apoio, Salazar explicou, em uma carta, que estava ‘profundamente entristecido’ e ‘desgostoso’ que os atos da administração angolana pudessem ser interpretados como ‘inimizade ou perseguição’, mas ele ‘não tinha conhecimento suficiente sobre a questão’ e confiava que Vilhena ‘tomaria as melhores decisões’, significando que a sua vontade de agir em nome da Diamang não era mais o que costumava ser”, defende o investigador brasileiro Mathias Alencastro em “Diamantes, Desenvolvimento e Conflito: o papel do setor mineiro na política de Estado e de guerra no Estado Colonial tardio de Angola, 1961-1974”. Cerca de um mês depois, o próprio Salazar desloca-se a casa de Vilhena para pôr fim à questão.

Nessa altura, recorda a nora, Maria dos Prazeres, hoje com 85 anos, o comandante já via muito mal e estava bastante fragilizado. “Custava-lhe muito descer os degraus, então passou a descê-los sentado. Um dia uma das empregadas ofereceu-lhe ajuda e ele respondeu: ‘Deixe-me cá mulher’.”

Uma versão comprovada numa carta que Salazar lhe enviou. “Tenho demorado a fixação da entrevista por hesitar no local para evitar a Vª sobretudo a subida de escadas. Nem o Forte de Santo António, nem a residência da Estrela, nem o Palácio de São Bento oferecem condições convenientes. Lembrei-me de que seria melhor eu deslocar-me a casa de V. Ex.ª.” E assim fez.

A morte nos altifalantes

No dia em que morreu, a 14 de fevereiro de 1967, vítima de uma broncopneumonia, Vilhena tinha-se retirado da Diamang há apenas três meses. A sua morte foi anunciada pelos altifalantes da empresa, recorda David Luna de Carvalho, que estava no Dundo, nas imediações do cinema.

“A transmissão foi interrompida de imediato”, acrescenta. Em Lisboa, a vida também mudou. Até porque um ano depois, com a morte do único filho de Ernesto, Júlio Vilhena, também administrador da Diamang, os dois grandes salários da família desapareceram e não havia poupanças que o compensassem. “Quando o meu avô morreu, não havia dinheiro no banco”, conta à SÁBADO o seu único neto, Manuel Vilhena.

“Tudo o que ele ganhava era para comprar antiguidades”, acrescenta. “O que existia era a coleção, a casa e um jazigo no cemitério dos Prazeres”, explica Maria João de Carvalho. A obsessão pela arte era tal que até nos velórios e funerais se detinha a observar o que via.

“Fui ao Estoril ao enterro do Fausto Figueiredo [o empresário que desenvolveu o turismo no Estoril]. Casa sem grande interesse, salvas algumas peças do serviço Princeza, em armário, em sala que eu suponho seja a de jantar”, escreveu a 6 de abril de 1950 nos diários.

Além de não haver dinheiro no banco, também não existia testamento que indicasse o que deveria ser feito à coleção. Mas pode não ter sido sempre essa a sua intenção.

“Antes de morrer recebeu a visita de Salazar, que lhe insinuou ser tempo de abandonar a presidência da Companhia dos Diamantes de Angola. Furibundo, o colecionador rasgou o testamento”, descreve um artigo da revista Moda e Moda.

“A história do testamento rasgado é conhecida, mas não consegui apurar se não será mais um dos mitos Vilhena. Não encontrei nenhum rasto nas fontes primárias. Mas continua a ser uma questão”, explica Maria João, que é também conservadora do Museu Nacional de Arte Antiga.

As sugestões para que abandonasse o cargo chegavam de vários lados. “A Diamang tinha o monopólio da extração e comercialização de diamantes, e às vezes nota-se alguma crispação nas palavras de Salazar, percebe-se que há alguma permeabilidade às tentativas de pressão, algumas delas levadas a cabo por Ricardo Espírito Santo, que nos anos 40, 50 funciona como intermediário de um grupo americano do setor. Apesar disso, a verdade é que Salazar acaba por nunca quebrar o monopólio da Diamang.”

Isenção de impostos à família

Vilhena e Ricardo Espírito Santo nunca foram próximos. Quando o antigo banqueiro morreu, o comandante não lhe poupou críticas: “3 de fevereiro de 1955 (5ª-feira) – Realizou-se o funeral de Ricardo Espírito Santo, com grande representação oficial e particular, estando presentes vários ministros e o Salazar. Longos artigos nos jornais (…) Manifestação absolutamente desproporcionada, com evidente exagero, e mesmo escandalosamente imoral (…) a um homem de senilidade notória, defraudador, durante longos anos, do património nacional (…) Este homem soube enganar todo o mundo, a criar-se uma influência desproporcionada com o seu merecimento!”

Em comum, Vilhena e Ricardo Espírito Santo tinham o colecionismo. “O inventário das obras de arte que estavam na casa de Ernesto Vilhena durou seis meses. Fazia-se todos os dias, das 9h às 18h, com intervalo para almoço e chá das cinco”, conta José Pereira da Cruz, administrador da Renascimento Avaliações e Leilões.

Para evitar o pagamento do imposto sucessório, parte desta coleção foi doada ao Estado português – o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) recebeu 1.503 esculturas, na altura avaliadas em 24.417 contos (toda a herança do comandante valia, em 1969, cerca de 80.406 contos, mais de 26 milhões de euros).

“A coleção Vilhena não tem comparação com qualquer outra coleção de arte em Portugal reunida no mesmo período, e até posteriormente. Foi a única coleção com esta dimensão constituída com um móbil nacionalista, ‘para a nação’, dedicada à arte portuguesa antiga”, acrescenta Maria João de Carvalho que, desde que trabalha no MNAA, esteve sempre dedicada à coleção de escultura.

Uma exposição “política”

A família não pagou impostos, mas convinha que o País percebesse porquê. Com as peças avaliadas e transportadas para o MNAA, era preciso organizar uma exposição e mostrá-las ao País. E depressa, defendia José Hermano Saraiva, então ministro da educação, que fechou o MNAA e mandou todos os seus funcionários – numa carrinha e em vários táxis – para a Biblioteca Nacional (BN).

“Era-lhes fornecida alimentação e ninguém saía dali enquanto a exposição não estivesse pronta”, escreveu nas suas memórias. Em 15 dias, estava tudo preparado, o que enfureceu a então diretora do MNAA.

“O encerramento das instalações do principal museu dum País, em plena época de turismo internacional, para todo o seu pessoal menor auxiliar a montagem duma exposição, deve ser um facto inédito na vida dos museus em qualquer parte do mundo”, escreveu Maria José de Mendonça a Hermano Saraiva, protestando “veementemente” contra “a ordem” que lhe tinha sido “imposta”.

Para a coordenadora, “pegar nas peças, enfiá-las num camião e levá-las para a Biblioteca Nacional, que ainda para mais estava em final de obra, estava muito longe do que eram as condições ideais. Nem sequer houve catálogo, só dois folhetos muito básicos, uma folha A4 dobrada”.

De tal forma que, quando Maria João de Carvalho perguntou à BN se podia ter acesso ao processo administrativo da exposição, a resposta foi: mas essa exposição não existiu, não temos nada. “Provavelmente foi tudo tratado pelo gabinete do ministro. Era uma questão política.”

Hermano Saraiva confirmaria isso mesmo. “Considerei indispensável uma exposição pública de todas as peças, para que o país pudesse ver com os seus olhos os motivos daquela isenção de imposto.” Apesar da pressa, não há registo de acidentes. “Há uma listagem das peças à saída e, quando regressam, não é anotada nenhuma alteração”, diz Maria João Vilhena de Carvalho.

Manuel Vilhena, joalheiro e neto do comandante, lembra-se bem da imensidão de obras de arte em que cresceu. “Escondia-me atrás das estátuas, que eram imensas, e dentro dos armários da biblioteca.” Havia uma sala “em que as coisas estavam todas em cima umas das outras.

Um sobrinho meu, na altura com um ano e meio, tinha imenso medo de lá entrar. Via tantos santos…”, acrescenta Maria dos Prazeres, mãe de Manuel. Marionela Gusmão, diretora da revista Moda e Moda, que várias vezes visitou a casa de São Bento, descreve à SÁBADO uma espécie de “babilónia”, com arcas em cima umas das outras. “Tinha dois homens que as carregavam para uma sala grande, para nós as vermos. Um dia fui lá ter às 16h e tal e à meia-noite ainda lá estava, sem jantar. Perdíamo-nos completamente.”

Os leilões mais valiosos

Nos chás oferecidos aos altos quadros portugueses e estrangeiros da Diamang ou do Banco Burnay, fazia parte obrigatória do programa a mostra das suas preciosidades”, conta Maria João Vilhena de Carvalho.

O comandante chegou a receber em sua casa Harry Oppenheimer, um dos empresários mais ricos do mundo, a quem mostrou a coleção. E também visitou a casa de um sobrinho, perto de Londres. “Vamos almoçar à casa de campo de Philip Oppenheimer (…). Aparece a mulher do Philip, razoavelmente bonita, mas sem nada de muito especial”, anotou.

Com a morte do comandante e do marido, Maria dos Prazeres mudou-se com o filho para a casa da Rua de São Bento. Maria Amélia, a mulher de Ernesto Vilhena, também continuou na mesma casa até morrer – mas nem sempre com os seis empregados de que Manuel ainda se lembra. “A minha avó foi mantida um bocadinho em silêncio. Não queriam estragar a ilusão a uma senhora daquela idade. A dada altura, o meu padrasto vestia-se com as roupas do jardineiro e ia tratar do jardim. E a minha avó ficava a ver da janela e dizia: ‘Lá está o Senhor José’.”

Em outubro de 1969, dois anos depois da morte do comandante, a sua coleção começou a ser leiloada (o que aconteceria até 2009). O primeiro grande leilão, que durou dois dias, tinha mais de 400 lotes e motivou a visita de especialistas do britânico Victoria and Albert Museum. José Pereira da Cruz acompanhou vários deles, a partir dos anos 80.

“Tinham peças fantásticas de arte sacra, muita faiança portuguesa, Companhia das Índias, mobiliário extraordinário, tapetes, sedas… A única coisa que ele não tinha era arte contemporânea”, conta à SÁBADO. Os 200 lugares sentados do Pavilhão de Caça da Ajuda (mais 100 de pé) nunca foram suficientes. “Havia clientes do lado de fora das janelas, a licitar, não sobrava uma peça e todas subiam de preço.” Num deles, a Leiria & Nascimento faturou 2,5 milhões de euros (um recorde para a leiloeira).

Ao mesmo tempo que colecionava obras de arte em Lisboa, Vilhena impulsionava a criação do Museu do Dundo, em Angola, que em 1974 tinha 20 mil objetos. Como diria o irmão João Vilhena:

“É certo que um homem rico pode adquirir tudo quanto a sua fantasia deseja. E paga sem hesitar. Está neste caso um que eu conheço, que na sua moradia (…) acumula tudo quanto a sua fantasia e a sua esmerada educação de oficial da marinha, antigo governador colonial, administrador de grandes empresas, consegue encontrar. E são os raríssimos livros, as mais finas porcelanas chinesas, os preciosos trabalhos em marfim, as rendilhadas obras de vidraria, ferragens, quadros, imagens, tapeçarias, curiosidades artísticas de todos os feitios, um mundo de tantas coisas belas, que a nossa vista se perturba e fatiga.”

Leilões sem catálogo

Não se sabe exatamente quantos leilões aconteceram entre 1969 e 1973, porque foram todos feitos sem catálogo, “mas é natural que tenha sido pelo menos um por ano”, diz Maria João Vilhena de Carvalho; entre 1992 e 2005, houve 16 leilões com a Coleção Vilhena no Título; e até 2009 aconteceram vários leilões mais generalistas, também com peças Vilhena.

Diários – Entre 1906 e 1962, Vilhena nunca parou de escrever. Sobreviveram 16 diários, cadernos de viagens e agendas de gabinete;

Verde – O comandante Vilhena escrevia quase sempre a verde, a cor simbólica do continente africano, por onde mais viajou;

21 ministros – Durante a sua carreira na Diamang, Vilhena trabalhou com mais de 20 ministros. E assinou quatro contratos com o Estado;

2.500 diamantes – Foi esta descoberta, em 1912, que levou à fundação da Diamang, primeiro liderada por Joaquim Paiva de Andrada;

in revista Sábado

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