“Existe em Angola espaço para a emergência de uma terceira via” – Carlos Pacatolo
"Existe em Angola espaço para a emergência de uma terceira via" – Carlos Pacatolo
Carlos Pacatolo

Carlos Pacatolo acaba de publicar em livro a sua tese de doutoramento sobre a perda de domínio do MPLA em Angola, país onde há uma juventude descontente propícia a ser atraída por líderes populistas.

O MPLA domina os destinos de Angola desde a sua independência. Primeiro como partido único, depois como vencedor de todas as eleições desde a implementação do sistema multipartidário no país. Essa predominância tem vindo gradualmente a diminuir, a ponto de, defende Carlos Pacatolo na sua tese de doutoramento na Universidade Católica Portuguesa, se tornar um fenómeno particular na África Austral: analisando os resultados eleitorais a curva é sempre descendente. Daí o nome da tese e do livro, agora lançado pela editora da referida universidade, UCP Editora, “O Domínio Decrescente do MPLA no Sistema Partidário em Angola (2008-2022)”.

“A tese o que faz é olhar para os resultados eleitorais que têm uma tendência decrescente e tentar explicar quais são as causas desse domínio decrescente. E usando os dados do Afrobarómetro, tendo como próxima a intenção de voto dos eleitores, com os dados de 2019 a 2022, eu tento compreender os vários factores associados a esse declínio”, explica Pacatolo, presidente e professor auxiliar do Instituto Superior Politécnico Jean Piaget de Benguela, investigador principal do Afrobarómetro em Angola desde 2019.

Como escreve Manuel Braga da Cruz no prefácio, esta tese, aprovada summa cum laude em Setembro, “é uma investigação rigorosa e objectiva” que nos ajuda “a compreender a mudança que, lentamente, se está a operar em Angola”, com a acentuada perda da influência do MPLA e que poderá levar a uma derrota do partido nas eleições.

A literatura sobre o assunto diz-nos que um partido dominante é aquele que ganha quatro eleições consecutivas, requisito que o MPLA cumpre e supera em Angola. O que faz Carlos Pacatolo é debruçar-se sobre os resultados oficiais das eleições, juntar-lhe a sua experiência, com David Boio, na recolha dos dados para o Afrobarómetro desde 2019, e perceber as razões por trás das vitórias cada vez menos expressivas do partido no poder. Isto é, por que razão o MPLA vai perdendo apoiantes a cada vitória. Ou, como explica o investigador, por que razão o domínio “tem essa tendência decrescente e se esse decréscimo é só uma fase ou levará a um desfecho que, eventualmente, poderá coincidir com a derrota do partido que tem governado Angola”.

E levará?
Nós não estamos a falar de um regime democrático, estamos a falar de um regime autoritário e, nos regimes autoritários, os partidos que governam durante muito tempo têm a vantagem decorrente do próprio exercício da governação: têm o controlo quase total dos recursos do país, têm o controlo dos meios e das instituições e usam estes recursos e estas instituições para desequilibrar a competição eleitoral. A competição é livre, mas manifestamente injusta.

O governo tem de ter o controlo desses recursos, não só para desequilibrar a arena da competição a seu favor, como também para cooptar pessoas dentro dos partidos da oposição, da sociedade civil e todos aqueles que têm uma leitura crítica do exercício da governação.

Além disso, o nosso autoritarismo é caracterizado por ser um autoritarismo clientelar e, nesse sentido, as redes clientelares funcionam também como elos de coordenação que diminuem, na prática, o custo de mobilização de pessoas nos períodos eleitorais. Por exemplo, nos meios rurais, as autoridades tradicionais ou algumas autoridades religiosas podem ser cooptadas e servir de elo de contacto entre o partido e a massa votante.

Portanto, além da vantagem que decorre do exercício do poder autoritário clientelar, o domínio também é consequência da forte capacidade de mobilização que o partido no poder tem. Vai fazer 50 anos no próximo ano e está fortemente enraizado no dia-a-dia das pessoas, logo tem uma vantagem grande na altura de mobilizar para o voto.

De que instituições estamos a falar?
O controlo dos meios de comunicação público, por exemplo. Os únicos meios que atingem o país todo são os públicos, a Televisão Pública de Angola (TPA) e a Rádio Nacional de Angola (RNA). Por essa via, a mensagem do partido que governa chega mais rápido.

Outra instituição relevante é a Comissão Nacional Eleitoral (CNE). O modelo de composição é um modelo partidário que segue os resultados das eleições. Portanto, se o partido até 2017 ganhou com maioria qualificada, significa que o partido tem a maioria qualificada dos 17 membros. E como o processo de tomada de decisão é por maioria, tudo o que são reclamações, tudo o que são contestações dos partidos na oposição dificilmente tem acolhimento.

Adicionalmente, temos a questão do Tribunal Constitucional. Se, de acordo com a Constituição, dos 11 juízes, o Presidente da República nomeia quatro, a Assembleia Nacional nomeia quatro, o Conselho Superior da Magistratura indica dois e apenas um é por concurso, estamos a dizer que o Presidente indica quatro, o partido presidido pelo Presidente, dos quatro da Assembleia Nacional, indica três. Já são sete. Se o Conselho Superior da Magistratura indica dois e nós sabemos que é o Presidente da República quem nomeia o presidente do Tribunal Supremo, que, por sua vez, preside ao Conselho Superior da Magistratura, há grande probabilidade de estes dois pertencerem à mesma cor partidária.

No final, dos 11 juízes-conselheiros do Tribunal Constitucional, que funciona como Tribunal Eleitoral, e valida os resultados, dirimindo as questões que forem surgindo ao longo do processo, existe um potencial elevado de dez serem da mesma cor partidária do presidente do partido que governa o país. Então, há um potencial elevado de as decisões do Tribunal Constitucional e da Comissão Nacional Eleitoral favorecerem o partido que governa durante muito tempo.

O alinhamento institucional e o controlo dos recursos têm um peso grande no resultado das eleições. Kenneth Green, em quem me apoio muito, diz que essa situação configura uma vitória antes mesmo do dia de votação.

Tendo isso em atenção, ter como base para uma tese de doutoramento os resultados oficiais das eleições em Angola, que podem ser muito questionáveis, implica…
São os resultados oficiais, mesmo que sejam questionáveis. Sobretudo os de 2022, em que a missão de observação da SADC [Comunidade de Desenvolvimento da África Austral] não emitiu um comunicado a declarar as eleições angolanas livres e justas. Tal como a missão da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa]. É a primeira vez na história das eleições de Angola que essas duas instituições não declaram as eleições angolanas livres e justas. Ainda assim, a tese apoia-se nesses resultados oficiais, que são os únicos que existem.

Considerando toda essa vantagem, como é possível que o MPLA esteja a ganhar perdendo?
Eu olho para os resultados da África do Sul, da Namíbia, de Moçambique, da Tanzânia e do Botswana no mesmo período e a tendência é de sobe e desce, as eleições angolanas são as únicas em que os resultados do partido governante só descem. E aquilo que a tese nos mostra é que há aqui a emergência de um eleitorado jovem, sobretudo um eleitorado que nasceu a partir de 1987, cuja cultura política mais consciente é feita num período de paz e que adere menos às narrativas da gesta heróica do partido governante.

É uma situação de jovens maioritariamente residentes num espaço urbano ou periurbano, tendencialmente mais instruídos do que os seus pais que, por isso, votam mais por factores de curto prazo. São mais conscientes, mais críticos, mais exigentes, querem mais coisas associadas à democracia, buscam valores e querem viver mais livres; ao mesmo tempo, são os mais desempregados. Desemprego, instrução, mais consciência crítica resultam em, tendencialmente, menos propensão para votar no partido governante.

Também são os que têm menos propensão para declarar a sua intenção de voto numa sondagem. Então, não sabemos bem para que lado tendem e o peso deles é tão grande que cria dificuldades para prever com clareza quem vai ganhar a eleição, porque, se decidem votar, desequilibram facilmente a balança.

O desafio que fica, e é por aí que a tese encaminha as próximas investigações, é tentar perceber se o que está a acontecer em Angola é só uma mudança demográfica, ou se estamos num processo de mudança geracional.

Qual é a diferença entre mudança geracional e a mudança demográfica?
A mudança demográfica é só o ciclo de vida normal, as pessoas vão mudando de idade, e à medida que mudam de idade vão exigindo outras coisas, vão tendo outras perspectivas. A mudança geracional tem que ver com os marcos históricos que afectam uma geração. Por exemplo, se olharmos para Portugal, temos a geração de antes do 25 de Abril e a geração do 25 de Abril; temos a geração de antes e depois da adesão à União Europeia; e temos a geração do desemprego, digamos assim, em que os jovens que se formam a única certeza que têm é que depois da formação vão continuar desempregados.

O desafio está em conseguir captar o voto desses potenciais abstencionistas, não?
Esse é o desafio das oposições, conseguir mobilizar essa juventude. Se conseguirem essa façanha, há aqui um potencial elevado de já nas próximas eleições haver mudança.

Aquilo que aconteceu em Luanda nas últimas eleições é um sinal disso?
Sim. Em 2022, as três províncias onde o MPLA perdeu são as províncias onde temos mais população no espaço urbano. Luanda concentra 98 % da população no espaço urbano. Depois de Luanda, é Cabinda, com 88% da população no espaço urbano, a seguir é o Zaire e depois a Lunda Sul. Quando olhamos para o resultado eleitoral e comparamos isso com a regressão estatística dos dados do inquérito, vemos que concentração da população no espaço urbano, juventude, mais escolarização é menos favorável à tendência de voto no partido do poder.

Parece que há aqui uma espécie de afastamento do eleitorado mais urbano e periurbano do MPLA comparativamente às oposições. E o inverso também acontece. A província mais rural de Angola é o Cunene, com cerca de 87% da população no espaço rural, depois é a Huíla, com cerca de 84%. Desde 1992 que os cinco deputados eleitos no Cunene são do MPLA, é a única que mantém esse recorde histórico. As outras províncias que também davam essas vitórias avassaladoras de cinco mandatos ao MPLA, em 2022 cederam. No caso de Malanje, a UNITA foi buscar dois; na Huíla, a UNITA foi buscar um; no Kwanza Sul, também.

E o MPLA apercebe-se disso?
Os sinais da governação não nos parecem ser consequência do resultado das eleições de 2022. Quem se habituou a ganhar com a maioria qualificada e chega às eleições de 2022 tem maioria absoluta, muito sofrível – perde a capital e perde Cabinda e o Zaire, duas províncias de onde sai a riqueza do país, que é o petróleo –, devia perceber o sinal de alerta à governação para mudar um bocadinho o estilo seguido nos últimos quase 50 anos. Mas não nos parece que o resultado eleitoral tenha permitido uma leitura consequente para corrigir aquilo que levou a esse resultado sofrido.

Chegou a haver um sinal de abertura depois de 2017, com a mudança de José Eduardo dos Santos para João Lourenço, mas isso desapareceu. Nas eleições de 2022 já era uma candidatura que se fechava sobre si própria.
O Presidente João Lourenço começou o seu primeiro mandato com uma abertura nunca antes vista, que galvanizou o país e deixou as oposições sem agenda. Mas, a partir de 2019, começou o retrocesso. Não sei se a abertura foi só um cálculo meramente eleitoralista ou se precisou de regressar ao partido, porque necessitava do partido para concorrer à reeleição. Esta é uma leitura possível, porque a abertura implicaria um preço muito alto a pagar nas eleições de 2022. Só que esse recuo deu à sociedade e ao país um fechamento, em algumas situações, pior do que aquele que tínhamos com José Eduardo dos Santos.

No início deste segundo e último mandato, esperava-se que voltasse àquele ímpeto do arranque do seu primeiro mandato, até porque é o segundo mandato e constitucionalmente não tem um terceiro, logo tem muito pouco a perder. Se aquela abertura que fez galvanizou o país, mobilizou o país e o país começou a acreditar no futuro, numa vida diferente, esperávamos que agora retomasse o caminho. Mas não há sinais de voltarmos a ter aquele Presidente de 2017, 2018, 2019.

O resultado da UNITA em Luanda é sinal de que a oposição está a conseguir captar esse voto jovem que estaria a ir para a abstenção?
Conseguiu captar o descontentamento, apesar de não o ter captado na totalidade. Luanda é a província do país que concentra mais de 50% dos investimentos públicos, das políticas públicas, mas é também lá que há mais problemas, o desemprego é mais gritante, a precariedade social é maior. Vemos os comícios que os secretários provinciais da UNITA fazem em Luanda e a quantidade de gente que arrastam – aquilo é completamente assustador. E não é um arrastão obrigatório, como se costuma dizer, as pessoas aderem voluntariamente. Parece que as pessoas estão ávidas de alguma mensagem de esperança, estão ávidas de alguma coisa diferente.

Enquanto nos outros países da África Austral os partidos do poder têm altos e baixos, em Angola os resultados do MPLA são sempre piores a cada eleição. Quer isso dizer que o MPLA está condenado a perder as próximas eleições ou ficar muito próximo de as perder?
Já esteve próximo de as perder em 2022. Depende de a oposição conseguir mobilizar o descontentamento da juventude, para converter esse descontentamento em participação política convencional, porque essa juventude está mais predisposta à participação política não convencional – há manifestações, protestos, mas de votar não querem saber, por não acreditarem nas instituições ou por não acreditarem que daí resulte alguma mudança.

Por não acreditarem no próprio sufrágio.
Exactamente. Quando medimos o nível de confiança nos nossos inquéritos, vemos que a Comissão Nacional Eleitoral é das instituições em que os angolanos menos confiam. Só cerca de 12% a 15% confiam nela. Angola figura no top 5 dos países africanos em que os cidadãos menos confiam nas instituições, sobretudo na comissão que dirige o processo eleitoral.

A oposição ainda não é suficientemente credível entre esses descontentes para que a olhem como alternativa. Porque quando medimos os índices de confiança no partido no poder e nos partidos na oposição, o partido no poder sai à frente. Isso é um sinal de que o eleitorado não vê os partidos na oposição ainda como alternativa – o que talvez nos ajude a compreender a elevada taxa de abstenção em 2022, que chegou aos 56%.

Temos um país com uma população abaixo dos 25 anos muito grande (64,9%), num país com uma altíssima taxa de desemprego (uma das maiores do mundo), sobretudo entre os mais jovens (de acordo com dados de Março do Afrobarómetro, 67% dizem estar à procura de emprego). Um país com essa população jovem que não acredita nas instituições democráticas, não acredita no processo eleitoral em que mais de metade descreve as suas condições de vida como más ou muito más não se arrisca a uma revolução social?
Espero bem que não. Mas se as oposições não conseguirem mobilizar esse descontentamento para a participação política convencional e levarem as pessoas a votar e eventualmente criar uma mudança, ou se o MPLA não acorda e consegue trazer esse descontentamento para a participação política convencional, de modo a reforçar a sua posição de poder, teremos um terceiro cenário. O afastamento vai agravar-se e, aí sim, haverá um risco elevado de, aparecendo aqui líderes populistas, instrumentalizarem esse descontentamento. E não temos bem noção das consequências dessa instrumentalização, seja para o nosso processo político, seja para a paz social que precisamos de manter a todo custo.

Há possibilidade de haver uma cisão dentro do MPLA, como aconteceu na África do Sul com o ANC e os Economic Freedom Fighters?
É muito pouco provável, não há sinais disso. O que pode ocorrer, tendo em conta o que aconteceu agora no Senegal, é ter um Presidente eleito com menos de 50 anos pela primeira vez, um Presidente que vem das manifestações e que conseguiu capitalizar esse descontentamento para a participação política activa. Nesse sentido, existe em Angola um potencial grande para líderes populistas e carismáticos da sociedade civil registarem um partido e conseguirem mobilizar essa gente para as eleições de 2027. Não tenho dúvida de que existe aqui espaço para a emergência de uma terceira via. Sobretudo, liderada por candidatos jovens.

in Público

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