O impacto da Fundação Jonas Malheiro Savimbi na reconciliação nacional – José Pedro Kachiungo
O impacto da Fundação Jonas Malheiro Savimbi na reconciliação nacional – José Pedro Kachiungo
José Pedro Kachiungo

A reconciliação nacional é um dos grandes objectivos dos Acordos de Paz Para Angola, assinados em 31 de Maio de 1991, entre o Governo da República Popular de Angola, representado pelo Presidente José Eduardo dos Santos, e a UNITA, representada pelo Dr. Jonas Malheiro Savimbi.

Começou a ganhar corpo em 1992, com a formação das FAA e com a consagração constitucional da República de Angola. Outros passos tímidos foram dados para a sua concretização efectiva, incluindo a consagração simbólica do dia 4 de Abril de 2002 como o Dia da Paz e da Reconciliação Nacional.

Nas duas últimas décadas, a reconciliação nacional tem sido entendida como um imperativo fundamental para o sucesso de todos os eixos estratégicos dos sucessivos Planos de Desenvolvimento Nacional.

Recentemente, o Estado angolano deu um novo impulso à reconciliação nacional, através de dois actos políticos significativos. O primeiro, em 2019, foi a libertação do corpo de Jonas Savimbi para a digna exumação, trasladação e inumação dos seus restos mortais. O segundo, em 2023, foi a autorização para a instituição da Fundação Jonas Malheiro Savimbi.

Este último evento, porém, foi esta semana objecto de uma crítica pública feroz da jurista Maria Luísa Abrantes, que eu li nas redes sociais. “Que país é este? Reconciliação nacional não é nada disto!”- são as suas palavras iniciais.

Na sua crítica, Abrantes (por sinal, nome de uma cidade portuguesa do distrito de Santarém, na margem direita do rio Tejo, fundada em 1179, com cerca de 714 Km2 e 34,000 habitantes), interroga-se se é normal enterrar uma esposa viva, se é normal atirar mulheres e crianças numa fogueira, ficar a presenciar e obrigar os seus correligionários a presenciarem e ficar impávido e sereno, “como fez o assassino sem escrúpulos, Jonas Malheiros Savimbi”?

Depois, comparando com Agostinho Neto, a crítica prossegue: “Será suficiente, a desculpa de que Agostinho Neto também permitiu, num contexto de tentativa de golpe de Estado, julgamentos sumários, sem direito a defesa dos arguidos, que foram presos e fuzilados? Um erro nunca poderia levar a outro erro maior. Se o Presidente Agostinho Neto, por receio de perder o poder, com o beneplácito dos torturadores da DISA e a conivência dos cobardes do BP do seu então movimento, preferiu nomear até iletrados, para nos governar e representar no Exterior, então retirem a sua estátua dos locais públicos. (…) Mas chegar ao ponto, de poder aventar-se a possibilidade do dinheiro dos contribuintes, ir parar a Fundações com estatuto de utilidade pública de serventia pouco transparente, para perpetuar o nome de pessoas de triste memória para os angolanos? Isso já é pedir-nos demais… Reconciliação Nacional não é nada disto!… Que me perdoem os meus concidadãos, mas eu não posso acreditar, que sede de poder e o medo de “perder o pão”, ou de ir preso, por dizer ou escrever a verdade (liberdade de expressão), possam estar a transformar os angolanos que viveram a guerra em “baratas”, que se deixam esmagar sem gritar”, fim de citação.

Considero-me concidadão de Abrantes, vivi a guerra, e aceito o pedido de perdão formulado pela renomada jurista, embora não a conheça.

Perdoou-a, porque está equivocada. Equivocada pela ignorância, pela cultura que lhe formatou e, quiçá, pelas estórias que lhe terão sido contadas. Por se tratar de um debate importante no contexto da formação da Nação angolana, recorro ao espaço público para exprimir também a minha opinião.

As instituições político-religiosas europeias, responsáveis pelas maiores mortandades da História, foram as primeiras a praticar tanto a feitiçaria como a queima de bruxas e hereges vivos. As igrejas Protestante e Católica perseguiram as “bruxas” com fanatismo idêntico, estimulado provavelmente pela Reforma. As vítimas desses julgamentos – dezenas de milhares – eram, sobretudo, mulheres. Estima-se que apenas 20% eram homens.

Em 17 de Fevereiro de 1600, centenas de pessoas lotaram o Campo dei Fiori (Campo das Flores), uma praça no centro da cidade de Roma, para assistir à morte na fogueira de Giordano Bruno, por ordem da chamada “Santa Inquisição”.

Giordano, um padre, filósofo, místico, poeta, autor de peças de teatro, nascido Filippo Bruno em 1548, em Nola, no reino de Nápoles, pagava com a vida pela ousadia de ter desafiado a Igreja e discordado das ideias então vigentes, entre as quais a de que a Terra era o centro do universo. Conta-se que, enquanto ardia na fogueira, ainda teve forças para virar o rosto a um crucifixo que alguém lhe havia mostrado.

Na Suíça, cinco mil pessoas foram julgadas por bruxaria até 1782. Dois terços delas morreram na fogueira após confessar sob tortura um pacto com o Diabo. A última bruxa da Suíça, a empregada doméstica Anna Göldi, foi decapitada em 1782.

Todavia, não deixou de ter uma Fundação instituída em seu nome. Um processo de reabilitação foi aberto pelo cantão de Glarus, que terminou inocentando-a agora, em 2008, muitos anos depois da fundação que leva o seu nome ter sido instituída.

Ao longo da História, no processo de construção das nações, Igrejas, governos e exércitos, decapitaram e queimaram pessoas vivas das mais diversas formas. Porém, seus líderes não deixaram de ser reconhecidos pelos actos nobres que praticaram para o bem de seus povos, reinos e nações.

Não deixaram de ter as suas estátuas, mausoléus ou fundações, não para eternizar seus erros nem para recordar as mortes que causaram, mas para eternizar seus feitos nobres e promover o bem comum.

De tal forma que, hoje, ninguém se refere ao Papa Clemente VIII como o “assassino” que mandou queimar vivo o filósofo e poeta, Giordano Bruno.

Ninguém se refere a Njinga Mbandi como a “assassina” que traficava escravos. Ninguém se refere a Luís de Camões como um boémio e “assassino”, que foi preso e permaneceu um ano encarcerado, antes de receber o perdão do rei e partir para Goa, Índia.

Destarte, os europeus trouxeram para África tanto a feitiçaria como a Bíblia. Trouxeram também o colonialismo, o neocolonialismo, a guerra fria e a quente, e também a vontade e o poder de dividir a África e pilhar seus recursos.

Trouxeram as armas, as teorias divisionistas, a indústria bélica e suas formas distintas de queimar pessoas vivas. E vimos isso durante o fratricídio, especialmente no Planalto Central. As bombas, os canhões, as granadas, os morteiros e as espingardas, lançam fogo, vomitam fogo. Fogo que queima as pessoas vivas. A guerra é desumana, a cultura da morte também. Não importa a arma ou o método, o fogo das armas queima e só mata pessoas vivas.

Entre nós, Agostinho Neto, mandou queimar pessoas vivas. Mas nem por isso deixou de ser o patrono de uma Fundação. José Eduardo dos Santos, enquanto Comandante em Chefe, queimou, ou mandou queimar pessoas vivas, ordenou assassinatos selectivos de opositores políticos, ordenou o massacre do Monte Sumi, a Sexta-Feira Sangrenta e outras violações sistémicas dos direitos humanos. Tudo “pela sede de poder”, tal como Abrantes refere em relação a Jonas Savimbi. Mas nem por isso deixou de ser o patrono de uma instituição de utilidade pública, a FESA.

No seu livro “Holocausto em Angola – Memórias de entre o cárcere e o cemitério”, ed. Nova Vega, 2007, o cidadão português Américo Cardoso Botelho, que chegou a Angola no dia 9 de Novembro de 1975, para integrar os quadros administrativos da Diamang, quando os portugueses faziam o movimento inverso, descreve assim os actos de terror ordenados por Agostinho Neto:

Na Barra do Kwanza, noite cerrada, uma clareira perto da estrada, uma barraca de apoio aos militares que guardam esta zona, e tudo o mais é deserto. Os prisioneiros são descidos das viaturas e a gasolina descarregada. As viaturas são dispostas de forma a iluminarem o sítio indicado pelo guarda militar local. Tino levava instruções para fazer sofrer os condenados até aos limites da sua imaginação e experiência. E, de facto, Tino revelou-se um notável executor de tais instruções. Este é, sem dúvida, um dos testemunhos mais eloquentes da violência arbitrária e brutal que o MPLA fez perpetuar no território angolano. Sob as ordens de Tino, o corpo já trespassado de balas é regado com gasolina e incendiado. Arde como um archote e incha como se de um balão se tratasse. Por fim rebenta, ardendo até ficar reduzido a cinza…”

E remata: “Seria difícil imaginar um processo de execução mais violento, sádico e sobretudo mais eficaz na fermentação do medo na consciência daquelas vítimas selecionadas para este ‘abate’. Foram mortos um a um, para que cada um fosse obrigado a ver na morte dos companheiros, prelúdio da sua própria. No fim, depois dos ‘ritos’ da bala, seguiu-se o banho de gasolina e a respectiva cremação dos corpos num autêntico gesto de ostentação do horror. A pá lançou os últimos resíduos ao mar, selando o destino trágico desta geração angolana de oficiais e procurando calar qualquer evidência que denunciasse estes
fuzilamentos
.” (pgs. 93-95).

E prossegue:

…Esta é uma das páginas mais sangrentas da história de Angola. Refiro-me às ações de limpeza militar coordenadas a partir do Ministério da Defesa no seguimento do golpe de 27 de Maio, que eliminaram muitos angolanos na força da vida, negros sobretudo, já que os mestiços foram frequentemente poupados. Os pretos da Segurança, cujos lugares virão a ser ocupados por mulatos, terão sido as vítimas privilegiadas. Aliás, contava que o número dois do Partido, Lúcio Lara, um mulato, tinha já dito a todos os mulatos que não dormissem em casa naquela noite de 27 de Maio…”.

Hoje, estas memórias servem, não para comparar a crueldade das atrocidades de ambos os lados da tragédia angolana, mas tão só para salientar, a exemplo de experiências como a da Comissão da Verdade, instituída no fim do regime do apartheid, a necessidade de Angola estabelecer definitivamente as bases estruturais, políticas e culturais da construção de uma verdadeira reconciliação entre os angolanos de todas as origens, em todas as suas dimensões.

O foco terá de ser o futuro, sendo o passado apenas uma referência e o presente uma alavanca para a construção do futuro numa Angola para todos.

O Direito, a hipocrisia e a teoria da supremacia de uma civilização, ou de uma raça, procuraram sempre inculcar na mente humana, que há mortes e formas de matar mais “aceitáveis” do que outras. Na verdade, não há. A vida humana é e será sempre sagrada e a morte é e será sempre desumana e cruel.

Apesar das inúmeras Convenções e Códigos de Ética, as Nações Unidas, o Direito internacional, a Religião e a Moral não conseguiram ainda eliminar a ignorância, a intolerância e o fanatismo que alimentam a cultura da morte em todas as civilizações humanas, no tempo e no espaço.

Nós, os bantus, abraçamos a cultura da vida. Veneramos nossos ancestrais e dignificamos nossos líderes, não pelos erros que cometeram, mas pelos sacrifícios que consentiram na defesa de causas nobres. Pela coragem, dedicação e resiliência.

Enfim, pelo patriotismo que demonstraram na luta pela identidade africana de Angola e pela construção de uma Nação democrática e multicultural, aberta ao mundo, segura e com igualdade de oportunidades para todos.

O Dr. Jonas Malheiro Savimbi é um dos ícones desta luta gloriosa, mas imperfeita. Fez o seu combate, construiu a sua obra e merece, por isso, o devido reconhecimento. Tal como os demais.

Pio X, Clemente VIII e outros Papas “assassinos”, não deixaram de ter túmulos dignos, estátuas e outras honrarias, porque a História perpetua especialmente os feitos nobres dos que a fizeram, e não os seus erros.

Holden Roberto, Agostinho Neto, Jonas Savimbi, José Eduardo dos Santos e outros líderes, deverão igualmente ser lembrados e honrados na sua Angola, pelos seus méritos, e não pelos seus deméritos. Bruxelas, Lisboa, Baku, ou Lausanne, não deveriam criar obstáculos à reconciliação dos angolanos. Abrantes também não.

A paz faz-se entre inimigos, a reconciliação faz-se entre irmãos, com base no perdão mútuo. A reconciliação entre os angolanos, estaria decapitada se, no que lhe diz respeito, o Estado angolano não concedesse à Fundação Jonas Malheiro Savimbi o mesmo espaço e a mesma dignidade que concedeu à Fundação Sagrada Esperança ou à Fundação Eduardo dos Santos.

Estou convencido, que a FJMS será uma parceira activa dos sucessivos governos de Angola na resolução dos imensos problemas sociais que o País enfrenta. Termino, apelando a todos os angolanos para se libertarem das amarras culturais do passado.

Abracemos a paz, a liberdade e a democracia, para construirmos juntos a reconciliação nacional, um imperativo da prosperidade e da justiça social, na Angola dos angolanos todos.

*Político e docente universitário

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