Reflexão de um sobrevivente do massacre do 27 de Maio – Miguel Francisco “Michel”
Reflexão de um sobrevivente do massacre do 27 de Maio – Miguel Francisco "Michel"
Miguel Francisco

Passaram-se 47 anos desde àquele trágico, mas célebre e histórico dia 27 de Maio de 1977, em que um grupo de corajosos militantes do MPLA ousou, legítima e justamente manifestar-se, por não concordar com a estratégia que um grupo de dirigentes perfeitamente identificável, escudado na figura do Presidente Agostinho Neto.

O grupo tentava, a todo custo, traçar um rumo que claramente se desviava dos objectivos pelos quais os verdadeiros patriotas de todos os matizes políticos sacrificaram suas vidas, para resgatar a honra e a dignidade dos angolanos negadas durante séculos de domínio e humilhação colonial na sua própria terra, objectivos consagrados nos estatutos e Programa do MPLA, que Nito Alves, José Van-Dúnem, Monstro Imortal, Bakaloff, Sianuk, David Aires Machado “Minerva”, Pedro Fortunato, Juca Valentim, Rui Coelho, Vicente Fortuna, Gungu Arão, e demais destacados dirigentes e militantes defendiam ferreamente.

A resposta à manifestação foi a violenta repressão levada a cabo pelo referido grupo, que a qualificou de tentativa de golpe de estado, pior: “INTENTONA FRACCIONISTA”, rótulo que um dos mentores e activo dirigente do massacre – Costa Andrade, “Ndunduma”, dolosamente concebeu e atribuiu à alegada tentativa de golpe de estado, a seguir amplamente difundida na imprensa pública até a exaustão, fundamentalmente na Rádio Nacional de Angola, tudo com o vil propósito de eliminar, selectivamente, a maior nata pensante que o MPLA tinha no seu seio, com destaque para a eliminação cruel e selvagem de Nito Alves, cujo corpo, segundo informações que me chegaram aos ouvidos, foi atirado ao mar.

Passados estes anos todos, caros compatriotas, mesmo que muitos não concordem com o que venho defendendo, cada vez mais me convenço, contrariamente ao que muitos defendem com toda a legitimidade que lhes assiste, o que esteve na base do 27 de Maio nada tem a ver com questões ideológicas.

Estas apenas serviam de arma, de ferramenta para o debate político que se travava no seio do MPLA, cujo propósito era o de defender os interesses fundamentais que levaram o próprio MPLA a pegar em armas e lutar contra o colonialismo português.

Porque naquela conjuntura política se entendia que a via socialista sustentada pela ideologia Marxista-leninista, era a que melhor servia os interesses da maioria dos angolanos, aqueles que durante o domínio colonial mais sofreram a discriminação e humilhação na sua própria terra.

Logo, esta opção não era de Nito Alves, muito menos dos dirigentes e demais militantes que apoiaram a sua causa, como os mentores da chacina insinuavam, mas do próprio MPLA enquanto organização política.

Por isso entendo e defendo, o que esteve na base do levantamento do 27 de Maio com as trágicas consequências daí resultantes, era, isso sim, uma questão de legitimidade política reclamada pelas duas alas em confronto, para se determinar a quem, realmente, naquela conjuntura política, assistia legitimidade de definir as grandes linhas sobre as quais se devia conduzir o processo político em curso, num País que fora alvo de domínio, discriminação racial e humilhação durante séculos.

Este para mim, caros compatriotas, continua ser a verdadeira essência do que esteve na base do 27 de Maio, que depois resvalou no massacre que todos conhecemos, que tinha como único propósito a eliminação seletiva da nata pensante, honesta e patriota de militantes no seio do MPLA. Este era o propósito do grupo que previamente concebeu, planificou e executou o plano macabro.

Face ao que vem se assistindo no País desde que a ala que triunfou na contenda que deu azo ao 27 de Maio e assumiu as rédeas do poder no País, parece que o tempo me está a dar razão. Hoje, até mesmo determinados historiadores que também aplaudiram a repressão sangrenta, convergem neste meu pensamento que venho defendendo há mais de quarenta anos.

Reconhecem que o que realmente estava em causa era a luta pelo controlo político do MPLA, enquanto entidade detentora do poder político em Angola, depois de ter unilateralmente proclamado a independência do País. Pergunto,

Que Angola temos hoje, caros compatriotas, desde que ela vem sendo governada pelo MPLA?

É por esta Angola que os verdadeiros patriotas de todos os matizes políticos sacrificaram suas vidas para o resgate da cidadania e identidade cultural dos angolanos, quando se constata que certos dirigentes do MPLA ao mais alto nível, afinal têm dupla nacionalidade – portuguesa e angolana – e só a renunciam quando são indigitados para exercerem cargos em órgãos de soberania?

Que exemplo dirigentes desta estirpe podem dar aos cidadãos que governam em matéria de cidadania e identidade política e cultural?

É por essa Angola que os verdadeiros militantes e patriotas lutaram, quando claramente se constata a gritante miséria que graça a maioria da população, contrastando com a opulência descarada da elite governante que, sem um pingo de pudor exibe descarada e insensivelmente a riqueza que acumulou injustificadamente?

É por essa Angola que os verdadeiros patriotas derramaram seu sangue, quando se assiste impávida e serenamente estrangeiros tomarem o controlo da economia, chegando ao extremo de se permitir que pequenos negócios que deviam ser desenvolvidos predominantemente por nacionais, estejam maioritariamente sob controlo de estrangeiros, incluindo cantinas?

Como reflexo das questões acima levantadas, que claramente consubstanciam uma gritante falta de patriotismo e identidade política por parte de altos dirigentes que governam o País, assiste-se a uma aguda febre por parte de cidadãos comuns em não só exilar-se, mas em adquirir a nacionalidade portuguesa, vendo nessa opção um privilégio que urge adquirir, para já não falar de dirigentes que, depois de reformados, “exilam-se” para Portugal, onde têm depositadas as fortunas que saquearam ao País enquanto governaram e lá passam o resto da vida usufruindo das referidas fortunas.

Muitos destes dirigentes só regressam ao País em urnas para apenas serem aqui sepultados, beneficiando das honrarias que os detentores do poder em Angola lhes prestam com pompa e circunstância, alegadamente pelos “relevantes serviços” que prestaram ao País.

Caros compatriotas

O MPLA governa o País há quase meio século. Ao longo destes anos todos, nem um único Hospital em condições aceitáveis construiu, para ao menos permitir que altos dirigentes do País, com especial destaque ao Presidente da República, nele possam ser tratados, de tal sorte que, se alguma fatalidade ocorrer, esta ocorra no seu próprio País, contrastando com a realidade de outros países africanos. Julius Nyerere, primeiro Presidente da Tanzânia, morreu num dos hospitais do seu País; ainda há bem pouco tempo o último Presidente deste País também morreu num dos hospitais daquele País; Nelson Mandela, morreu no seu próprio País; Keneth Kaunda, primeiro Presidente da Zâmbia, morreu no seu País; em fevereiro do ano em curso, morreu num dos hospitais em Windhoek, Hage Geingob, terceiro Presidente da Namíbia.

Contrariamente, os nossos dois chefes de estado morreram no estrangeiro, para não falar de grande parte de dirigentes do MPLA que governaram o País, incluindo os que planearam e dirigiram a repressão sangrenta, salvo raras excepções. Tudo isso porque não se apostou na saúde, por manifesta falta de vontade política.

Numa só palavra: por manifesta falta de PATRIOTISMO. E, tudo isso, caros compatriotas, por mais que custe admitir, é reflexo da tragédia do 27 de Maio. Porque entendo, salvo opinião diferente, grande parte dos melhores e verdadeiros militantes que o MPLA alguma vez teve no seu seio, são os que foram trucidados no massacre de 27 de Maio.

Disso não tenham dúvidas, caros compatriotas. É só avaliar a forma como determinados dirigentes do próprio MPLA acumularam riquezas em detrimento do povo que dizem defender. Em vez de servi-lo, serviram-se dele para se enriquecerem, contrariando os Estatutos do próprio MPLA de quem juraram fidelidade.

Desde que venho me batendo individual e coletivamente, para que se discutam e se esclareçam os contornos que estiveram na base do massacre que se seguiu após o dia 27 de Maio, nunca chamei a mim o exclusivo da razão.

O que reivindico é que a questão seja discutida publicamente, ou no mínimo, numa comissão especializada, para que se esclareça uma série de questões que até hoje são um autêntico mistério. Custe o que custar, leve o tempo que levar, a verdade sobre o que esteve na base da repressão sangrenta após a manifestação do dia 27 de Maio terá de ser desvendada, para que a sociedade saiba quem foram os verdadeiros responsáveis pela tragédia que vitimou milhares de angolanos desnecessariamente.

Não é admissível que se oculte eternamente uma situação tão grave como a do 27 de Maio, só porque se pretende manter o poder a qualquer preço. Não posso (nem devo) aceitar que um problema tão grave da magnitude do 27 de Maio se resolva com um simples discurso, seguido de um slogan muito mal concebido – abraçar e perdoar, e logo a seguir se homenageiam figuras que ontem foram consideradas criminosas, mas devido os estragos que o dossier 27 de Maio vem causando, se transformam essas figuras em Heróis, com direito a honras de Estado, quando o mais sensato seria discutir-se o que esteve na base da morte dessas figuras que ontem foram injustamente consideradas criminosas, para no fim, o Estado, corajosamente, produzir um documento onde vem espelhado o que realmente se passou, assacando responsabilidades aos seus autores. Não me refiro à responsabilização criminal, mas a política. Não se constrói um edifício a partir do tecto como a CIVICOP vem fazendo. Há uma série de questões que urge serem esclarecidas.

Por exemplo, até hoje persiste a dúvida em saber quem foram os verdadeiros responsáveis pelo assassinato dos comandantes cujos corpos foram encontrados carbonizados dentro de uma Combi branca, nas barrocas do Bairro Sambizanga, logo às primeiras horas do dia 28 de Maio.

Foi, sem sombra de dúvida, este acto hediondo, que provocou a ira do Presidente Neto que, irreflectidamente, agindo a quente, sem estar a altura de um verdadeiro Chefe de Estado digno deste nome, ditou, naquele fatídico dia, a sentença de morte com trânsito imediato em julgado, fazendo com que o grupo que havia previamente concebido o macabro plano de eliminação selectiva de militantes integros no seio do MPLA se servisse da sentença ditada em hasta pública pelo Presidente Neto, lhe possibilitando a concretização do macabro plano. Entretanto, é voz corrente que a referida Combi fora vista no Hospital Militar na manhã do dia 27 de Maio, a ser conduzida por um sujeito perfeitamente identificável;

Nito Alves, nas suas 13 Teses em Minha Defesa recentemente publicadas, na páginas 172 e 173 do livro, faz alusão a reuniões que se realizavam na casa de um conhecido comandante, no bairro Alvalade, reuniões em que participavam vários indivíduos, que, coincidência ou não, era o grupo que concebeu e dirigiu a repressão sangrenta. O que se discutia nas referidas reuniões que se prolongavam até a madrugada?

Julgo que obrigatoriamente deve partir-se das questões acima levantadas, fundamentalmente a questão em torno do macabro assassinato dos comandantes encontrados mortos e carbonizados nas barrocas do bairro Sambizanga, para se apurar se, na verdade, foram mesmo os “fraccionistas” a mando de Nito Alves e José Vandúnem como se difundiu até a exaustão na TPA, Rádio Nacional de Angola e no Jornal de Angola, ou o grupo acima referido, que precisava de um pretexto para materializar o plano macabro que previamente urdira escudando-se na figura do Presidente Neto e servindo-se dos aparelhos do Estado que na altura controlava.

Repito, é preciso desvendar este mistério. Foi por causa do sinistro assassinato dos malogrados dirigentes, que foram massacrados milhares de jovens inocentemente, para não falar dos que foram presos e enviados em campos de concentração como o da Calunda, no Município do Alto Zambeze, Província do Moxico, onde fui enviado, na companhia de mais jovens.

Face às questões acima apontadas, impõe-se a imperiosa necessidade de se criar uma Comissão da Verdade, composta por indivíduos de idoneidade moral e intelectual comprovadas, para que sejam esclarecidos os contornos que estiveram na base da repressão sangrenta de 27 de Maio, abrindo, para o efeito, os arquivos da DISA, se é que ainda existem.

Em vez da CIVICOP preocupar-se em descobrir as ossadas de dirigentes da UNITA assassinados na Jamba no contexto da Guerrilha levada a cabo por àquela organização política, questão que julgo ser do foro específico da UNITA, o Governo e o MPLA devem preocupar-se com a descoberta da verdade do que esteve na base do massacre que vitimou milhares de angolanos, cujas consequências são as que o próprio MPLA hoje está enfrentar, a braços com uma gritante falta de militantes honestos, patriotas e fiéis à sua linha política.

Só com o esclarecimento das questões acima referidas, e as demais que se impõem para a descoberta da verdade do que realmente esteve na base do massacre, será possível uma verdadeira RECONCILIAÇÃO, baseada num verdadeiro PERDÃO, para que as vítimas possam então perdoar os algozes e depois abraçá-los. O resto, não passa de mera encenação que nunca vai resolver essa questão do 27 de Maio, que assenta, necessariamente, na descoberta da VERDADE.

*Sobrevivente

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