“Não considero o Nito Alves um herói (…) MPLA chegou ao poder por via de um golpe” – Luís dos Passos
"Não considero o Nito Alves um herói (...) MPLA chegou ao poder por via de um golpe" – Luís dos Passos
luis dos passos

Revelações de Luís dos Passos, um dos integrantes do grupo que foi acusado de promover uma tentativa de golpe contra Agostinho Neto e o MPLA, de que resultaram mais de 30 mil assassinatos. Esteve fugido, nas matas dos Dembos, então 1ª Região, por cerca de 13 anos e não fosse essa decisão, provavelmente, teria conhecido a morte.

(…) Luís dos Passos, uma figura incontornável na narrativa dos factos que ocorreram no dia 27 de Maio 1977 (apenas dois anos depois de proclamada a independência) e nos dias e anos que se seguiram, com uma repressão e matança que enlutou quase todas as famílias angolanas à pretexto de uma “tentativa de golpe de Estado”.

A Amnistia Internacional calcula que, pelo menos 30 mil pessoas foram presas, torturadas e assassinadas num período de dois anos, que terminou em 1979, com a entrada de José Eduardo dos Santos. Mas nem mesmo com ele, apesar do domínio de 36 anos, do lado do Governo, nunca houve esforço e interesse em fazer o levantamento para o conhecimento da verdade, provavelmente, porque acarretaria sérios prejuízos para o MPLA, porque afinal, o fraccionismo, a matança que se seguiu, quem participou e quem dirigiu tem no seu cadastro a militância nesse partido.

De lá para cá, decorreram exactos 43 anos e, por coincidência, este ano, a data foi assinalada também numa sexta-feira. Apesar do pedido de perdão feito em nome do Estado pelo presidente da República João Manuel Lourenço, sente-se que ainda não há, de facto, paz nos corações de todos aqueles que foram vítimas directas dessa sanha assassina trazida das matas, ou indirectas, refiro-me, concretamente, aos familiares das vítimas, que aguardam pela entrega das ossadas dos seus entes.

Empreitada difícil… envolta, logo à partida, por uma enorme nuvem de suspeição, porque os principais actores não dão a cara, e nalguns casos, até são homenageados, por quem em nome do Estado, pediu perdão.

Luís dos Passos, numa longa conversa de regresso ao passado que repartimos em duas publicações, ajuda-nos a tentar perceber o que de facto ocorreu já que, a nossa percepção ao analisarmos este caso, é que foi resultado de conflitos internos no MPLA trazidos da mata com muita malvadez à mistura, porque lá já se matavam entre eles com muita crueldade, e o choque com uma nata de jovens extremamente inteligentes e capazes que encontraram nas cidades formados nas escolas coloniais, de quem tiveram medo e ciúme.

E no meio de toda essa embrulhada, Agostinho Neto não soube ser o líder com capacidade de fazer a ponte geracional entre as duas alas, conjugada com a defesa dos interesses que motivaram a luta pela independência, cujo comprometimento nunca foi, a tomada do poder e todos os benefícios para um só grupo: eles, que, supostamente, fizeram a luta de libertação.

Como disse o histórico comandante Monstro Mortal (João Jacob Caetano), guerrilheiro da 1ª Região, uma das vítimas dos assassinatos, mostrando à Agostinho Neto as cicatrizes nas costas de ferimentos recebidos em sua defesa e de uma suposta causa em que acreditou, “não foi isso que combinamos”.

E, de facto, a matança não fazia parte de qualquer projecto dos “fraccionistas” nem qualquer “golpe de Estado”, como nos refere Luís dos Passos, nesta primeira parte do seu depoimento deste projecto que tem como finalidade, “Desamarrar” a verdade ainda amordaçada da nossa história como nação independente.

Ela tem sido contada apenas por uma das partes e como lhe convém, continuando a ter apenas os seus, como as principais figuras de referência ou de resistência.

E não é assim que se constrói um Estado Democrático de (ou e de) Direito harmonizado, reconciliado, onde, como cantou Teta Lando à Sombra da Mulemba, “os seus mortos vão saber porque morreram afinal”…

Estamos ainda demasiado longe, mas toda caminhada começa por um passo. E esse, com Luís dos Passos, é apenas e só, mais um contributo.

Luís dos Passos como quer que o trate? Por general ou apenas pelo seu nome?
Apenas pelo meu nome: Luís dos Passos. Não sou general. Sou considerado “fraccionista” pelos meus próprios companheiros nas Forças Armadas. É assim que eles ainda nos consideram. Sou general, apenas em Malanje. É assim que sou tratado pelo meu povo. Todos eles, incluindo o Pedro Sebastião (na altura em que foi concedida esta entrevista exercia funções de Ministro de Estado e Chefe da Casa Militar do Presidente da República), que nos conhece bem, não aceitam que temos o nosso próprio estatuto nas Forças Armadas.

Jura, que tudo o que relatar nesta nossa conversa é verdade e só a verdade?
Juro! Tudo verdade. Não acrescento mais nada. Espero que vocês analisem o que eu digo. Não tenho nada a ocultar. Direi apenas o que sei. A verdade!

Quem é Luís dos Passos?
Nasci em Malanje, terra do meu pai, em 1955, filho de um enfermeiro, funcionário público, que percorreu um pouco o país e foi para Malanje. Sou o terceiro filho. O mais-velho de todos é o Boaventura Cardoso. O meu pai foi um dos primeiros dentistas angolanos negro, formado em 1933. Eram dois: o Cardoso, meu pai, e o Correia. Foram os dois primeiros dentistas, negros, em Luanda, e trabalhavam no Hospital Maria Pia. Foi também professor de enfermagem. Já tinha o 5º ano como habilitações académicas, e quando foi expulso do seminário recorreu à enfermagem. Entre os seus alunos, durante a sua formação, teve como colegas Agostinho Mendes de Carvalho e outros mais-velhos.
Em Malanje, para além de exercer a sua profissão, também deu aulas a muitos jovens que depois se tornaram auxiliares de enfermagem. Mas o meu pai morreu muito cedo, em 1967. Eu tinha 12 anos, e acabamos por vir para Luanda porque o meu irmão mais-velho, o Boaventura Cardoso, que assumiu o suporte da família, conseguiu um emprego nas Finanças e acabamos por vir. A minha mãe e toda a sua família são de Luanda, e ela queria viver cá. E assim acabamos por vir todos. Foi uma mudança brusca, porque os do interior quando chegavam a Luanda eram tratados como homens do mato. Tivemos que fazer a adaptação. Embora conhecêssemos Luanda quando vínhamos em gozo de férias, estava habituado a um ambiente diferente. Mas acabamos por ficar. Fiz os meus estudos no Liceu Paulo Dias de Novais e no Instituto Industrial. Foi assim até aos 18 anos, porque seis anos depois, aos 24, acabei por fugir para o Congo, para as fileiras do MPLA, porque estava a ser perseguido por indivíduos da PIDE/DGS (Policia Internacional de Defesa do Estado/Direcção Geral de Segurança) que já tinham ido à Igreja do S. Domingos procurar por mim, por causa de uns panfletos que fazíamos.
Eu e o Filomeno Vieira Lopes, fazíamos lá umas cartilhas e panfletos do MPLA, e eles sabiam da existência daquelas máquinas policopiadoras (impressoras que funcionavam à manivela com películas de stencil), porque naquela altura, elas eram registadas e esses dados estavam sob controle da PIDE. Eles controlavam tudo e só alguns sítios é que tinham. Eles sabiam que só os funcionários públicos é que manuseavam esses equipamentos, e por isso deram conta que os panfletos estavam a ser feitos na Igreja do São Domingos.
Foi o padre Dom Luís Carta quem me avisou que tinham aparecido lá uns homens brancos e então, com o Filomeno Vieira Lopes, organizamos a nossa fuga.

Tão jovem e já era militante do MPLA?
Em 1974 eu já era militante clandestino do MPLA. Comecei a tomar contacto com questões relacionadas com a resistência contra o colonialismo e a existência das forças nacionalistas, entre os 14 e 15 anos. Fiz parte de um grupo bastante activo muitos dos quais foram presos, como o Nelito Songa, da família Cadete, que esteve toda ela envolvida: pai e mãe, os avôs do Loló e do Pai Querido, PCA da Sonangol. Eu já fazia clandestinidade no grupo onde estava também o Gentil, irmão deles, que era da minha idade. Foi depois preso e morto na sequência dos acontecimentos do 27 de Maio, apesar de também ser efectivo da DISA (Direcção de Informação e Segurança de Angola). Já o Nelito Songa estava preso. Mas nós continuamos. Naquela altura, idealizei um assalto à Escola industrial Oliveira Salazar, em Luanda. O caso chegou ao conhecimento da PIDE que procurou, felizmente para mim, pessoas erradas: o Pacavira, por exemplo, o Saturnino, que foi médico, e o Jesuíno José Carlos, irmão do Carlitos Vieira Dias, o Malheiros (engenheiro) da zona do Marçal. Eu era o único que estudava na Escola Industrial. Mas também exercia outra actividade na Igreja do São Domingos, que servia de cobertura para as minhas acções de trabalho da clandestinidade. Fazia, todos os domingos, a leitura de extractos bíblicos e ia e vinha da escola sempre bem acompanhado com meninas. Logo, o que eles pensaram é que eu era um bom mulherengo. Eu fazia bem essa camuflagem, e então eles não tinham domínio de que também estava envolvido na politica.
A última acção que tínhamos programado foi contra um tal Bula, agente da PIDE. Esse tipo era muito mau, dava muita surra aos presos na cadeia de São Paulo. Por isso, um dia, nos nossos encontros de concertação de acções, decidimos eliminá-lo. Pretendíamos, primeiro, roubar uma arma à polícia e esperá-lo quando passasse pelos eucaliptos, ali prós lados do bairro Caputo, onde eu morava. Pretendíamos atacá-lo aí, e dar-lhe um tiro. Mas, pronto! Depois chegou o 25 de Abril, e tudo ficou mais ou menos. Então fugi de avião para o Congo, em 1974, e integrei o MPLA.

Foge para o MPLA e depois entra para a guerrilha?
No Congo, foi constituído um grupo denominado “Dos 100” que foi para a Zâmbia de avião. Chegados lá, fomos presos e depois de resolvida a questão, fomos levados para a sede do MPLA denominada VIC (Vitória é Certa). Posteriormente, seguimos um pouco mais para o interior, onde fizemos treinos militares. Depois da assinatura dos Acordos de Paz, em Lumeje (Moxico), no mês de Outubro, com as autoridades militares portuguesas, como já estávamos preparados, fomos divididos por vários grupos e enviaram-nos para o interior de Angola, com o objectivo de fazer a preparação de tropas. Do meu grupo saíram alguns instrutores como o Cassagi, o falecido João de Matos, o Pogliese que já está na reforma, o Mário António, que foi secretário do MPLA e CO da GEFI- Sociedade de Gestão e Participações Financeiras desse partido.
Eu fui enviado para Malanje e outros para o Sul. Desse grupo que foi para o Sul, a maior parte acabou por morrer num confronto com os sul-africanos. Foi uma razia. Coitados! Morreram todos. O grupo foi reduzido e dos que seguiram para Malanje, recordo-me do Menha kwa Ngungu e outro que ainda está aí, o Pakas (Manuel Mendes de Carvalho Pacavira), que manda muitas bocas. Foi meu colega. Faz tempo, concedeu uma entrevista bombástica sobre os que mataram no 27 de Maio. Acho que ele nem devia abrir a boca para falar sobre isso, porque ele também matou. Mas isso são outros quinhentos.
Tenho primas-irmãs que foram presas por serem minhas familiares, estão aí em vida, e que dizem que o Pakas fez trinta-por-uma-linha. Uma vez ele estendeu a mão para saudar uma prima minha, a São Canguia, e ela não aceitou e disse-lhe que as mãos dele estavam sujas de sangue. Ele sabe disso. Ele prendeu um irmão da Lima Tota. Ele nem devia abrir a boca para falar de matanças e mortes, porque ele esteve ligado a tudo isso.

Mas, continuando com o seu percurso nas FAPLA…
Depois fiquei instrutor militar de muitos dos actuais generais, e por isso é que muitos consideram-me também um general. O Patônio (António dos Santos Neto, já na reforma) e o Disciplina (António Egídio de Sousa Santos, chefe do Estado Maior General das FAA) foram meus colegas. Mas isso não acrescenta nada na minha vida. Não preciso. Fui instrutor militar e dei baptismo de fogo ao general Disciplina, ao general Ngutu (Jorge de Barros), já falecido, e a tantos outros. Quando começou a guerra, em 1975, eu estava em Malanje e na sequência do meu desempenho, após uma visita realizada por Agostinho Neto nesse mesmo ano, fui nomeado comandante de Esquadrão, que naquela altura era equivalente a capitão, uma patente de relevo na estrutura de comando. Fui ainda, nesse período, comandante de um Batalhão de Intervenção Rápida treinado por dois comandos catangueses. E foi assim, que um grupo dirigido por mim travou a penetração de forças sul-africanas que quiseram tomar Malanje, porque era uma rota e ponto estratégico muito importante para penetrarem no Leste, via Saurimo. Eles tomaram o Luena no dia 9 de Dezembro e pretendiam seguir imediatamente para Malanje, porque assim cortariam e isolariam a Lunda (ainda não estavam divididas). Foram de comboio e tomaram rápido a Lunda no dia 9 e no dia 10 queriam tomar Malanje. Por essa altura, o Lúcio Lara estava de visita a Malanje, e ele dizia que eu não deveria ir para a frente. Apesar da insistência dele, eu argumentava que tinha que visitar as tropas. Apanhei uma brecha – funcionava tipo bombeiro a apagar vários fogos – e como tinha que ir buscar uma guarnição – já que também era chefe de logística – fui à busca de explosivos para a eventualidade de se ter necessidade de partirmos a ponte sobre o rio. E na verdade, tivemos mesmo que tomar essa decisão. As nossas tropas não estavam ainda suficientemente preparadas para fazer frente às tropas sul-africanas. Tínhamos bom poderio de fogo mas, em termos de organização militar, não estávamos tão bem. Então partimos a ponte e recuamos e aguardamos mais algum tempo, até que, com mais preparação de instrutores cubanos e já num formato de exército regular, com companhias de infantaria, unidades de tanques, alguns deles de reconhecimento enviados pela 9ª Brigada, tipo BRDM, constituímos um batalhão e partimos em direcção ao Bié, seguindo por Cambundo Catembo, Lukembo, Quirima, Saltar, passamos o rio Luango e demos corrida aos sul-africanos. A ofensiva prosseguiu até ao Luena, no Moxico, e quando deram conta que também estávamos a preparar-nos para cortar o caminho da linha férrea, na zona do Cuemba, porque era difícil passar por estrada no Munhengo, um dia antes de chegarmos, eles voltaram a fugir. A ofensiva passou também pelo Huambo mas eles, a partir daí, foi só fugir… fugir… fugir… para o Cuando Cubango. E a 14 de Fevereiro, com outro grupo, foi só segui-los, até que passaram a fronteira. Fugiram porque não tinham hipótese. Já tínhamos preparação e um poder de fogo muito superior ao deles, com suporte dos BM 21.

Nessa fase, já contavam com o apoio de forças cubanas em acções de envolvimento directo?
Já estávamos com cubanos, por causa dos BM 21,que chamávamos de “Mona Caxito de 40 canos”. Não tínhamos ainda gente formada para manusear essas armas, que eram muito fortes. Estive nessas operações todas até Maio/Junho de 1976. Entretanto, depois disso, fui chamado à Luanda para dirigir a Direcção Política da Força Aérea.

Chamado por quem? Por Agostinho Neto?
Sim! Não quis aceitar esse cargo, porque eu era um homem de guerra e não um político. Mas, como militar, e naquela altura de grande pendor politico, tinha que cumprir. O que se pretendia com a minha intervenção, era melhorar a organização e a influência do MPLA dentro das Forças Armadas, a exemplo do que acontecia nos países aliados da esfera comunista, como Cuba e a Rússia. De facto, nós ainda estávamos muito misturados e desorganizados: quem era militante e quem não era, ou era apenas militar. Era preciso organizar e por isso fui enviado para lá. Mas, também fiz apenas quatro ou cinco meses nessa função, porque fui colocado na Direcção Política do Estado Maior General, também para organizar o partido nas Forças Armadas de forma mais abrangente, porque a partir dessa estrutura, já tinha responsabilidades que se estendiam e tinham correspondência com as direcções provinciais e noutras armas (ramos) como a Força Aérea. Portanto, a esse nível, era o chefe nacional da organização partidária.

E onde é que começa a sua ligação com Nito Alves e Zé Van-Dúnem?
O Nito Alves era uma pessoa muito conhecida e todos nós que estávamos ávidos de leitura política, ficávamos empolgados com os seus discursos. E, ressalte-se que, para além da história heróica de resistência dos guerrilheiros da 1ª Região, onde ele esteve, apesar de jovem, era já uma figura destacada nas Forças Armadas, no próprio MPLA, onde era membro do Comité Central, e foi ministro da Administração Interna.
Já o Zé Van-Dúnem conhecia-o há bastante tempo, até porque foi ele quem influenciou a minha adesão ao MPLA ou aos seus ideais. Por outro lado, é preciso clarificar também que, um quadro como eu, da chefia da Direcção Política do Estado Maior General, já era uma figura de grande relevância na estrutura de comando das Forças Armadas e na sua interligação com a estrutura de direcção politica do MPLA. E foi no quadro dessa relação, que comecei a tomar conhecimento das divergências que existiam e que não eram apenas de carácter ideológico.
O MPLA já veio da mata com muitos problemas que se estavam a agudizar, nesse ambiente em que as pessoas tinham mais abertura e contactos. Muitos pensam que as divergências entre nós e a ala de Neto, eram só ideológicas. Mas não! Já naquele tempo, uma delas, era o alto nível de corrupção que existia no seio do MPLA, para além de outras que influenciavam, como o racismo ou o protecionismo racial ou ainda, se quisermos, o complexo de inferioridade do neocolonizado.

Já havia corrupção no MPLA por essa altura? Como assim?
Sim! E com nomes perfeitamente identificados. Os documentos que eu vi na mata, enquanto estive com o Nito Alves, atestavam isso. Depois da fuga, o Nito Alves escondeu uma pasta com esses documentos debaixo de uma pedra, nas proximidades de um riacho. Depois levou-a para o Comité Central do MPLA. O Dino Matross (Julião Paulo) sabe bem disso, porque foi ele quem foi buscar os documentos. O Evaristo Domingos Kimba (já falecido), que era membro do Comité Central, também teve acesso e sabia bem da existência desses documentos probatórios. Alguns deles reportavam o processo de compra à Itália daqueles jipes Campaniola, que foram para as Forças Armadas. Foi um negócio feito por Pedro de Castro Van-Dúnem (Loy), que era comandante. Ele ganhou uma comissão com isso e esses carros não serviam para nada. Para fazermos missões de serviços para as regiões (províncias), tínhamos que andar com um tambor de gasolina no carro, o que era altamente perigoso. Houve o caso de uns rapazes que mandei para o Uíge, que tiveram um acidente por excesso de velocidade mas foi o tambor que depois rolou e bateu na cabeça de um deles, matando-o. Para não dizer que, nas emboscadas, bastava um tiro de uma bala incendiária e era uma autêntica bomba. Queimava os ocupantes e todos os que estivessem à volta do carro. Era complicado!
Outro caso foi o da compra de viaturas de marca Peugeot para a Polícia. O Petroff (Santana André Pitra) era o comandante, e comprou carros para a Policia Nacional e também beneficiou de comissões no exterior. Foi um negócio de luxo, comprar Peugeot 504 para fazer rondas na cidade. Era uma brincadeira!
Quem também estava envolvido era o Manuel Pedro Pacavira, então ministro dos Transportes, que também comprou centenas de viaturas de marca Mercedez para exercerem actividade de táxi, bem como outras de marca Seat, a Espanha. Eram grandes negociatas. Para além desses casos que estavam bem descritos nos documentos que Nito Alves tinha em sua posse, havia um outro caso sério.
Em 1976, a Nigéria (no tempo em que Olusengu Obasanjo era Presidente) ofereceu 3 milhões de dólares a Angola para reestruturação das Forças Armadas, para além de inúmeras viaturas Volvo 740. O Iko Carreira, na altura ministro da Defesa, guardou os sacos de dinheiro em sua própria casa e foi enviando por parcelas para Portugal.
O indivíduo que fazia o transporte, numa das vezes foi apanhado no aeroporto, porque o dinheiro estava escondido numa peça de mobiliário e numa torradeira. Era fotografo das FAPLA, chamava-se Victor Soares, viveu no Lobito. Já é falecido. Acabou preso, cumpriu uma pena de oito anos no Campo de Correcção de Bentiaba. Quando saiu, de medo mudou de nome e passou a chamar-se Victor Oliveira. Um amigo meu que esteve preso com ele, o Quim Sequeira, ouviu a confissão de que queriam matá-lo, que no decorrer da sua prisão e do julgamento o Iko Carreira mandava mensagens e esteve lá, fazia sinais ameaçadores à distância, abanando o pé e balbuciando avisos perceptíveis: “Aí de ti se falas”. Ele próprio pediu ao Quim Sequeira para contar essa sua narrativa se morresse na cadeia. Quando depois foi liberto, o Quim Sequeira encontrou-o no Lobito e identificou-o. Ele ficou todo assustado e negou que era o individuo a quem contou a história… E voltou a manifestar o receio de ser apanhado outra vez e de ser linchado. E, na verdade, quando o Zé Reis escreveu sobre os sobreviventes do 27 de Maio tentou contactá-lo para falar sobre isso, mas o homem já tinha falecido. Mas ele cumpriu uma pena de oito anos e por causa de três milhões de dólares que tinham sido desviados por Iko Carreira.
Mas não foi apenas ele. O Hermínio Escórcio também esteve metido no meio disso tudo. Também visitou o Victor Soares, a quem avisou que não devia dizer nada. E acabaram depois por arranjar outra forma para continuar a meter esse dinheiro lá fora. O Iko Carreira tinha, em 1975, e mesmo depois, um cunhado que era motorista (camionista), o Cindo, um sujeito muito mau, que matou muita gente, que ainda há dias a Milucha (Maria Luísa Abrantes) falou dele, e que passou depois a ser a mula de transporte da camanga (diamantes). Tornou-se depois num elemento altamente perigoso da DISA, que tinha acesso a tudo porque era cunhado do Iko Carreira. Tudo isso se sabia e atesta que os níveis de corrupção já eram altos. Não tinha nada a ver com Marxismo-Leninismo. Não!
A insatisfação já era resultado do descontentamento pela existência do alto nível de corrupção. Tanto mais que, quando Neto pediu que Nito Alves fizesse a sua autocrítica – sabe que houve uma tentativa de conciliação – ele disse que não fazia isso, não se rendia diante de hipócritas e camanguistas. Ele sabia de tudo e Agostinho Neto também. Mas ainda assim, numa sessão da Assembleia do Povo, Neto defendeu-o afirmando que “o Iko (Carreira) era um bocadinho preguiçoso mas devia ser perdoado”.

Foi isso que criou o sentimento de revolta em Nito Alves, e é isso que está por trás da sublevação?
Sim! Tudo isso criou esse sentimento de revolta em Nito Alves e em todos os seus apoiantes, porque viam esses comportamentos como uma traição aos ideais que defendiam e pelos quais se bateram. O grande mal de Nito Alves esteve na forma como manifestava esse descontentamento, que deu lugar a uma sublevação popular e naquilo que ficou conhecido como “tentativa de golpe”. O Zé Van-Dúnem também apoiava essa decisão, mas a Sita Valles dizia que não. Mas, ponto assente, acho que o Nito não devia ter direccionado todo esse descontentamento para essa via. Mas estava tudo muito complicado naquela altura. Apesar do meu envolvimento e solidariedade, eu estava em desacordo com Nito Alves. Mas sabia que havia gente infiltrada no Comité Central e no Bureau Politico.

Mas essa gente infiltrada pertencia a que ala? A de Nito Alves ou a que prestava informações a Neto?
Era uma ala do MPLA. Por exemplo, ainda na mata, Iko Carreira era tido já como colaborador da PIDE, e que passa todas as informações das actividades do MPLA. Iko Carreira era antigo. Quando foi criticado por ter mandado a família para o lado dos tugas, houve na direcção do MPLA quem o defendesse porque auto-criticou-se. Mas então, você é terrorista, está do outro lado, como é que consegue negociar com quem você está a lutar para mandar a tua família sã e salva para Luanda? Para mandar os filhos para aqui, é porque negociou de alguma forma. Número um: porque já passava informações; número dois: havia outros dados do período da guerrilha que foram causa do aumento da clivagem; número três, faziam-nos crer que dentro do MPLA havia quem não estava interessado realmente na independência. Não sei se sabe, mas em 1972, já não estava quase ninguém da guerrilha nas matas. A zona dos Dembos e do Piri, na Primeira Região, viviam uma autêntica tragédia. Todos os que sobreviveram fugiram para a Zâmbia. Em Cabinda, era entrar e sair em Sanga Mungo e Sanga Planície. Os guerrilheiros entravam, atacavam e fugiam. Pode ter a percepção do momento difícil que se vivia, o nível de corrupção que existia já nessa altura lendo o livro Maiombe, de Pepetela (Artur Pestana), que também foi guerrilheiro. Não gosto dele, pelo seu envolvimento em todo esse processo que culminou na morte de milhares de pessoas. Mas o que ele escreveu nesse litro, é o retrato de uma realidade que se vivia no MPLA. Até já se trocavam produtos da logística com mulheres no Congo. E mesmo quando nós chegamos, em 1974, aqueles mais-velhos que estavam lá, o Ngakumona (Daniel Damião Lourenço) por exemplo, quando nos viam a passar fome diziam: “Fica esperto jovem, o MPLA não ajuda ninguém. Rouba aí, apanha aí umas latas e vai trocar na sanzala. Ou então troca munições por cabrito”. É isso que nos ensinavam. Nunca vi coisa mais desorganizada na minha vida, que o que encontrei quando cheguei ao MPLA. Nunca vi e tive dificuldade de acreditar no que via.

Para si, tudo aquilo que tinha ouvido antes sobre o MPLA e a luta de libertação, ou dos avanços da guerrilha estava a parecer mentira?
Postos lá, nós mandávamos mensagens pela rádio para os nossos amigos não irem. Não valia a pena. Aquilo estava muito mal. Havia uma sala ampla, de cinco a seis metros quadrados, que pertencia a Agostinho Neto, com amontoados de documentos no chão, encostados à parede. Eles já se tinham esquecido da luta pela independência. Todos os documentos estavam amontoados e de forma atabalhoada. Perguntaram um dia quem sabia escrever a máquina, e eu e mais um outro jovem (o Rafael) respondemos que sabíamos. E chamaram-nos para organizar os documentos do “camarada presidente”. Achei aquilo muito estranho. Não me conheciam, não me tinham feito nenhuma entrevista para saber quem eu era, e já estavam a meter-me em casa de Agostinho Neto para arrumar documentos? – questionei-me. Disse que não tinha ido para lá para ser dactilografo e não aceitei. Mas estava tudo desorganizado. Nunca vi coisa igual. Quando chegamos ficamos um dia inteiro sem nada, no dia seguinte também não nos deram sequer comida, e depois os mais-velhos a aconselharem-nos a roubar aí umas latas. Os de Cabinda, como eram mais activos, já tinham rebentado aquilo, já tinham arranjado panelas e latas vazias para cozinhar. Nós, cheios de princípios, tínhamos dificuldades, porque achávamos que não devíamos mexer na logística dessa forma. Repito, nunca vi coisa tão desorganizada e reafirmo que eles não estavam preparados para a independência de Angola. Aqueles que faziam a luta de clandestinidade, os que estavam presos em Luanda e que incorporaram o MPLA, foram a salvação.

Podemos entender que esse movimento, de Nito Alves, foi no fundo o choque entre aqueles que de facto fizeram a guerrilha na 1ª Região, contra aqueles que viviam na ‘boémia’ no Congo e noutros países?
Ora nem mais! Depois disso, o choque de Nito Alves com o grupo que estava em Luanda, na clandestinidade e que saiu das cadeias, foi terrível, porque eles estavam desorganizados e não tinham hipótese. Foi um choque muito grande, porque os que vinham das matas estavam muito desorganizados. Por outro lado, o nível cultural deles era muito baixo. Não estavam preparados para dirigir, para governar aquela sociedade já com grande evolução. Muitos saíram das sanzalas para a guerrilha ou para o Congo. Imagine que o comande Kiluange (César Augusto) a primeira vez que foi a casa do Zé Van-Dúnem ficou admirado com a água que saia da torneira. “Olha! Está a sair água do cano” – dizia ele. Portanto, ele saiu lá da lavra onde vivia, na mata, apanhava água no rio e não sabia que já havia água canalizada. Mas é compreensível porque eles fugiram em 1961, ficaram nas matas ou no Congo e não tinham acompanhado esse desenvolvimento. Não acompanharam a evolução das coisas. E foram esses indivíduos que se tornaram altos dirigentes do MPLA e do país, embaixadores, etc… E depois, mesmo no Congo e na Zâmbia, muitos já tinham fugido. O major Kanhangulo (a maior parte dos angolanos nem sequer sabe quem foi e qual o seu nome próprio), a que deram até o nome à rua Direita de Luanda onde os meus avôs e pais nasceram (fico muito revoltado com isso) abandonou o MPLA em 1972. Ele disse: “Oh Agostinho Neto vocês são aldrabões, não há independência nenhuma, acabou… está aqui a tua arma”. Arranjou uma mulher zambiana e ficou a trabalhar na sua lavra, lá na Zâmbia. Quando ocorreu o 25 de Abril, de forma oportunista, regressou e como era de Malanje, falava bem uma língua local, o Songo, pegaram nele e mandaram-no para lá. Eu conheci bem a história dele, porque passei pela Zâmbia.

Também conheci o major Kanhangulo, em Malanje, andava com uma viatura de marca Subaru de cor verde, que mal sabia conduzir e, provavelmente, terá sido essa a causa do acidente que o vitimou no centro da cidade…
Sim… e fez bem. Não se deseja a morte a ninguém, mas há uns que se justifica esse desabafo.

Porquê? Também pertenceu ao grupo da matança?
No 27 de Maio, ele foi à estação provincial da Rádio Nacional ameaçar os jornalistas ou locutores para meterem o sinal no ar, para se acompanhar o que se estava a passar em Luanda. Entrou na rádio eufórico a perguntar e a pedir: “Vocês não sabem o que se está a passar em Luanda? Liga… liga… meu filho”. Mais tarde, quando as coisas deram para o torto, voltou lá com as tropas e prendeu todos os que ele próprio mandou ligar o sinal. Portanto, queria apagar o rasto daquilo que estava a ser considerado um crime, porque foi ele quem pediu para ligar. Pôs o pessoal na cadeia e uns tantos acabaram por ser assassinados.

Mas qual foi o envolvimento de Luís dos Passos nesse grupo nuclear acusado de dirigir a tentativa de golpe de Estado?
Depois desses acontecimentos e pela vivência que eu já tinha no MPLA (que estava muito mal), aconteceu outra coisa perigosa que me motivou a estar contra o Neto. Havia um comandante de nome Cantiga (Bonifácio Quinda), membro do Comité Central, lá do Leste, que foi apanhado em flagrante, a entregar material de guerra a UNITA. Era o chefe da logística lá. Eu era o responsável da logística em Malanje e sabia que para se ter acesso a esse material, era complicado. E ele foi apanhado a entregar material a UNITA. As tropas reclamaram junto do comandante Dangereux (Paulo Mungongo). Ele incentivou-os a apanhá-lo, se era mesmo verdade. E foi apanhado em flagrante a entregar material a UNITA. Como estávamos em plena guerra e pela gravidade do crime, foi sentenciada a sua morte lá mesmo onde foi apanhado mas, depois, não se sabe bem porque razão, foi levado para a Lunda. Mas o Tchizainga (Celestino Bernardo) não o queria lá, porque era do Comité Central, era dirigente, não queria assumir essa responsabilidade. E então mandou-o para Luanda. Contrariamente ao que todos esperávamos, posto em Luanda ele não foi sequer chamado, não foi repreendido, não foi preso, andou por aí e quando chegou o primeiro patenteamento, em 1 de Agosto de 1976, ele foi promovido com a patente mais alta das Forças Armadas, enquanto nós, que tínhamos caído várias vezes em emboscadas da UNITA cujos soldados usavam fardas iguais as nossas, compradas aos países do bloco socialista, não fomos contemplados. Eles usavam fardas iguais as nossas, mandavam-nos parar nalguns postos que montavam e afinal eram emboscadas, matavam-nos com disparos à queima-roupa. Isso revoltou-nos. Intrigou-nos. Como era possível um membro do Comité Central fornecer armas e o nosso fardamento à UNITA e contar ainda com a protecção de Neto, quando víamos os nossos companheiros e soldados a morrer à toa? Foi aí que eu decidi que não queria mais nada com Neto. Certamente já leu as “13 Teses da Minha Defesa” de Nito Alves. Como é que era possível termos infiltrados no Comité Central do MPLA e com a protecção de Neto? Não podia estar em concordância com ele.
Por outro lado, eu sabia de outros actos anteriores, como o caso de Iko Carreira, que fornecia informações à PIDE. Quando em 1966 o grupo Cinfuegos, o primeiro, chegou à 1ª Região, ele disse na rádio, no programa “Angola Combatente”, que havia de fazer uma mensagem patriótica de encorajamento nos seguintes termos: “Aos meus camaradas, compatriotas e companheiros que acabam de chegar vitoriosamente à Primeira Região” e descreveu os nomes e os pseudónimos deles, desde o comandante Monstro Imortal (João Jacob Caetano) até ao último. Sabe para que era aquilo? Era para a PIDE apertar e prender pessoas, para saber quem eram os tais que chegaram à 1ª Região. E era assim que a PIDE conseguia depois decifrar todos os dados para localização dos guerrilheiros, dos familiares e dos amigos. Uns diziam que isso era normal, mas não era nada normal porque envolvia a segurança das pessoas e do projecto de luta pela independência.
Segundo o que me contou Monstro Imortal, quando queriam fazer planos para engrossar a guerrilha no interior, ele era sempre o que dissuadia dizendo que “não valia a pena, porque se tentássemos passar por aqui vamos ter dificuldade no rio tal, se formos por ali vamos encontrar as tropas portuguesas,”. Enfim… colocava sempre empecilhos. Era sempre ele o que desencorajava, porque estava a fazer o trabalho dele, a impedir que a guerrilha se desenvolvesse. Então andam lá em guerras internas. E quando esse grupo conseguiu, com muito sacrifício, deixar o Congo, foram eles próprios que tiveram que preparar o seu material, as suas mochilas com os seus pertences, as armas e outras coisas. Sabe o que é que aconteceu quando chegaram ao Congo depois daquela travessia ao Congo Kinshasa até chegar a fronteira? Encontraram todo o material trocado. As pistolas já não estavam, havia armas sem culatras, já não encontraram os rádios transístores que serviam para ouvir música e notícias de vez em quando lá na mata, e os rádios de comunicação também não estavam. Em vez de encontrarem as botas que usavam naquela altura, feitas de lona e borracha preta iguais as que a Macambira (fábrica de calçado situada na Vila Alice), fazia em Luanda, encontraram quedes (ténis). Claro que, quando chegaram à 1ª Região já estavam todos rotos, alguns já estavam a caminhar descalços, e as fardas fraquinhas estavam profundamente desgastadas. Logicamente, o grupo ficou revoltado e não pretendia seguir mais, porque consideravam aquilo uma traição. Mas o Monstro Imortal como era muito lúcido e decidido, insistiu que deviam continuar e chegaram. Mas isso era uma forma para desincentivá-los a seguir para a 1ª Região para continuar a guerrilha, porque estávamos já em 1966, a capacidade combatida estava a diminuir porque não se disponibilizava o material necessário de suporte. Por outro lado, a vontade, mesmo dos cubanos que já estavam lá porque o Che Guevara já havia passado pelo Congo e aconselhou que era melhor levar para as frentes de guerrilha armas de calibre português (ocidental como se dizia), a G3 e F1, eles diziam para levar armas de origem oriental, que eram a AKA, a PPSh e a SH. Claro que depois não havia balas de reposição. E foi isso que aconteceu. Apesar de muitas dificuldades por que passaram, o grupo chegou vitoriosamente. Mas, passados dois a três meses já não tinham material, não tinham munições. E não tinham nenhuma outra fonte de abastecimento, porque nem a diferenciação de material permitia que se utilizasse, por exemplo, munições obtidas de acções contra as forças coloniais.

Portanto, qualquer abastecimento de reforço da logística tinha que sair do Congo?
Sim! Quando o Monstro Imortal regressou para ir buscar mais material, mandaram-no para a Checoslováquia fazer um curso inter-armas, razão pela qual as heroínas assassinadas, (para mim heroínas sim e de todo o tamanho) insistiram que tinham que ir para a 1ª Região. E vou dizer-lhe que a Deolinda Rodrigues era uma combatente do nível de Nito Alves dentro do MPLA. Por isso é que ela seguiu nesse grupo e, infelizmente, por desgaste acabou por regressar e acabou assassinada pela FNLA. E essas contradições continuaram e nós que estávamos lá conhecíamos e lavaram à nossa desmotivação. Diga só que comandante, ou o mais simples borra botas que fosse, que manda guerrilheiros fazer uma marcha de centenas de quilómetros numa época chuvosa. Porquê que esse grupo, que constituiu o Esquadrão Kami, dirigido por Ingo (Benigno Vieira Lopes), com aproximadamente 200 integrantes, saiu numa época de chuvas torrenciais (Janeiro/Fevereiro)? Para quê? Tentaram justificar que foi a oportunidade. Mas a verdade é que foi tudo tão mal planificado, que até foi difícil atravessar um rio e muitos acabaram por morrer como morreram. Chegaram à 1ª Região apenas cerca de 27 e uns de tipóia, outros doentes e mal nutridos, profundamente desgastados, incluindo o próprio Ingo. Há quem diga que o Ingo foi culpado… mas eu não acho! O Ingo também nunca tinha comandado tropas. Quando viu a situação mal parada no rio Mbridje, autorizou que parte do grupo regressasse. E por falta de experiência, utilizaram os mesmos caminhos da ida, onde, claro efectivos da FNLA que já os tinham atacado na ida, estavam à espera e foram todos presos. De quem foi a culpa? Agostinho Neto dizia, no Congresso de 1977, que terminaram a missão vitoriosamente. Mas isso é tudo mentira! O grupo foi derrotado. E a culpa foi de Agostinho Neto, como presidente do Comité Director, por ter aceite mandar, em época chuvosa, um grupo fazer aquela marcha tão perigosa. De todos os grupos ou esquadrões que tentaram chegar ao interior de Angola, só o Esquadrão Cinfuegos, de Monstro Imortal, conseguiu. Porque o Monstro era muito duro. Quando algum guerrilheiro estivesse já cansado e a desfalecer ele dizia: “Meu amigo ou te levantas, ou dou-te um tiro já aqui, porque se ficares serás feito prisioneiro e vais dar as informações todas ao adversário. Se não continuas, prepara-te já, faz já as tuas orações e despede-te já”. E eles com medo, levantavam-se. Foi assim que chegaram todos à 1ª Região. O Ingo não tinha coragem para fazer isso.

Luís dos Passos qual foi a cronologia do vosso exercício nos dias que antecederam ao 27 de Maio?
Quando eles viram que as coisas estavam a correr mal, primeiro organizaram a reunião do Comité Central (de 3 a 6 de Outubro de 1976) e suspenderam os membros do grupo. Criaram uma comissão de inquérito, que foi chefiada por José Eduardo dos Santos, para apurar se havia ou não fraccionismo. Mas essa comissão não apurou fraccionismo nenhum, porque não havia mesmo. E foi o grande mal de Nito Alves, porque ele deveria ter feito reuniões para concertação sobre o que se deveria fazer daí para frente. Mas ele insistiu no facto de já se ter considerado o grupo de fraccionista, e então foi o que aconteceu. Nesse período conturbado antes da expulsão de Nito Alves, aconteceram antes as eleições para os órgãos do Poder Popular, um processo coordenado e controlado por ele, porque era o ministro da Administração Interna. Mas todos aqueles grupos que participaram na organização dessas eleições foram conotados como fraccionistas, e muitos até foram presos antes do 27 de Maio. A partir daí, o ambiente começou a ficar um pouco mais quente.
Para melhor enquadramento, é bom recordar que em Março, Fidel Castro visitou Angola, e embora eu não acreditasse, o grupo de Nito Alves pensava que ele viria acalmar um pouco o rumo que o ambiente político estava a tomar. Mas, Fidel Castro foi muito claro ao dizer que “defender Neto era defender a revolução”. Foi o mesmo que dar a conhecer a sua posição de defesa e de que, incondicionalmente, estava do lado de Neto. E não podia ser de outra forma, porque havia interesses económicos muito fortes por detrás dessa ‘simpatia’ por Neto.

Há muito que se via no interior do MPLA questões muito evidentes de racismo, a contradição entre mestiços e negros (ou o favorecimento de uns), e isso também se tornou evidente na cooperação com Cuba e com a então União Soviética (Rússia). Por outro lado, parecia que havia ali uma certa disputa entre soviéticos, que tinham perdido o protagonismo, em relação aos cubanos que estavam a ficar com tudo?
Ora nem mais. Os soviéticos, “roeram a corda” como se diz. A então União Soviética estava de facto a dar apoio ao Nito Alves e até incentivava. Mas não avançava com nota em concreto

Mas quem fazia os contactos ou a ligação com os soviéticos. Era Nito Alves, Zé Van-Dúnem ou você?
Era o Zé Van-Dúnem, mas quem os levou para fazerem esse contacto fui eu. Na Direcção Política das Forças Armadas eu tinha assessores soviéticos, um deles chamava-se Victor. Era quem eu levava sempre para falar com Zé Van-Dúnem e ele é quem dizia se estava bem, se estavam de acordo. Mas, de qualquer das formas, eles “roeram a corda”, não só ao nível da embaixada, como da direcção do Partido Comunista e dos Serviços de Segurança na União Soviética, que tinha como presidente Leonid Brejenev. Mas isso aconteceu porque eles também não tinham grande poder de influência aqui. Fidel Castro tinha mais interesses económicos e financeiros em Angola, e mais presença com homens e meios que protegiam o sistema imposto por Neto.

Aliás, desmontaram as açucareiras para que passássemos a comprar o açúcar deles (cubano)…
Eles desmontavam tudo para levar, como vimos depois aquando da sua retirada de Angola. Até sanitas das casas onde estavam instalados eles desmontaram e levaram. Carros então… nem se fala. Vimos tudo isso sair pelos nossos portos.

Foi um ‘roubo’ de Estado para enfraquecer outro Estado (angolano) que diziam apoiar no quadro do internacionalismo?
Sim! Para ficarmos dependentes deles. Para além do açúcar que passaram a vender-nos, havia também os diamantes que sacavam e até o negócio de droga que passava por Angola. E por isso, Fidel Castro mandou matar o general Arnaldo Ochoa, um dos militares mais condecorados da história desse país, acusado de ter praticado “crime de traição à pátria e à revolução”. Veja que naquela altura, as Forças Armadas até arroz recebiam de Cuba. Quase tudo vinha de lá: açúcar, arroz, feijão, tabaco e outras coisas. Eram grandes quantidades. De facto, nas frentes as tropas passaram a alimentar-se melhor. Aqui só tínhamos que dar a carne enlatada, que vinha da Bulgária, já que não havia tanta carne de frango.

Mas o que é que falhou então? Nito Alves, como se afirma, não tinha pretensão de fazer um golpe, não havia organização. Afinal, o que ocorreu mal então?
Nito Alves não pretendia fazer nenhum golpe e eu já falei sobre isso noutras ocasiões. Não havia nada de golpistas nem de fraccionistas. Ele não planificou nenhum golpe de Estado. Nem sequer havia qualquer grupo organizado de fraccionistas. Isso não é verdade. E se tudo tivesse sido bem preparado para um golpe, o desfecho não seria favorável à Neto. E hoje há provas que confirmam, que muitos dos generais que passaram a reforma, quando tiveram conhecimento dessa manifestação de descontentamento, disseram claramente a Nito Alves que se “não for para um golpe não me meto”. Eu próprio também disse isso e defendi o mesmo. Mas depois que levei o Zé Van-Dúnem para falar com os soviéticos, envolvi-me e naquele dia foi preciso envolver-me ainda mais, até porque, de qualquer das formas, eu seria condenado. Mas eles não prepararam nenhum golpe tanto, nem sequer tinham um plano de recuo ou de fuga. Tudo era tido como fácil. Eles diziam que “mandavam na 1ª Região e na 9ª Brigada”. Para além da Guarda Presidencial, Agostinho Neto não tinha mais tropas organizadas do seu lado. Eles conseguiram dominar uma nossa unidade de carros BRDM de reconhecimento, que ficava no Cazenga, mais uma brigada de reconhecimento chefiada pelo José Maria (general que foi chefe do SINSE). Mas nós tínhamos lá o Chandoca que acabou por ser morto. Mas até ele, nesse dia não participou, porque tinha receio. Enfim…
Por outro lado, as nossas tropas não estavam preparadas para um confronto directo contra os cubanos, nem isso estava previsto, apesar de eu ter feito o alerta de que os cubanos entrariam e dispostos a matar. E quando eles viraram as armas contra nós, não estávamos preparados para reagir. É preciso ter em conta que a defesa, num caso de insurreição, é a morte e aquilo tinha que ser um contra-ataque constante. Eu próprio não acreditava nos homens que foram indicados por Zé Van-Dúnem. A marcha ou manifestação estava programada primeiro para o dia 25, mas foi adiada sem data. O Bajé (Manuel Cassule), o homem que esteve comigo durante 13 anos nas matas dos Dembos, era o que tinha maior formação e ele insistiu para que não se fizessem as coisas daquela forma, porque não estávamos preparados. E por isso, inicialmente, a manifestação foi adiada e sem dada de realização. E quando tudo começou a acontecer, ele próprio também foi apanhado de surpresa e não participou.
O Zé Van-Dúnem, influenciado por outros camaradas oficiais como o Veloso e outros, por exemplo, que diziam que se tinha que fazer mesmo “porque as massas estão cansadas de tirar as armas e esconder”, decidiram sair no dia 27 de Maio. E foi o descalabro. Foi criado um estado-maior especial – que não foi por iniciativa ou orientação nem de Nito Alves nem de Zé Van-Dúnem. Mas desde o primeiro instante que se estabeleceu que o exército só interviria se houvesse oposição armada, da parte das forças aliadas à Agostinho Neto. Não tinham grandes hipóteses, porque nesse domínio tínhamos tudo controlado. Hoje diz-se que a 9ª Brigada não tinha tanques. Não é verdade. Os tanques estavam para sair do Soyo para Luanda, se para tal fosse necessário. As unidades anti-áreas ZT1, que foram para o Lubango, também estavam disponíveis. Os BM-21 também estavam disponíveis. Portanto, todas as unidades que foram afastadas exactamente por causa disso, estavam dispostas a vir para Luanda. Se tivéssemos feito uma preparação melhor, teríamos o apoio dessas unidades, que tomariam Luanda se necessário, começando pelos sítios mais básicos. A 9ª Brigada estava do nosso lado, bem como a unidade que estava ali a Che Guevara, no Grafanil. Hoje tenho a felicidade de estar aqui, vivo, mas fui eu que mandei tomar essa unidade, porque é lá que estava a logística militar. Quem deveria executar essa intervenção era a unidade que tínhamos no Cazenga, onde estava o nosso amigo Chandoca, mas não foi. Outra unidade importante que se deveria tomar, era a Rádio. Quem tinha essa orientação era o capitão Diabo Negro – o comandante de uma unidade da Polícia Militar que funcionava em frente ao Instituto Makarenko, ao lado do local onde foi construída a sede do grupo César & Filhos – que deveria tomar também a unidade de comunicações, na baixa de Luanda, que funcionava no que chamávamos Obras Públicas (Serviços de Viação e Trânsito). Não tomou e quando eu perguntei o que se passava, disse que havia muita gente e muita confusão. Disse cá comigo, que também já havia “roído a corda”, estávamos mal. Portanto, como referi, não estava nada organizado sequer para o recuo. Nada. Não havia nenhum plano alternativo. Como não estavam a pensar em golpe, acharam que a manifestação seria suficiente, razão pela qual, quando as populações desceram do Sambizanga e de outros bairros em direcção à zona do Palácio, alguns empunhando armas como era quase moda naquela altura – mas um exército não luta com apenas algumas armas – verificaram-se alguns disparos. Mas isso não funcionou, como foi o caso daqueles ataques que se fizeram aos comerciantes.

Só para clarificar: não houve tentativa de golpe de Estado mas sim uma sublevação, consequência de descontentamento, pela forma como já naquela altura o MPLA estava a gerir o país?
Mas é isso mesmo. Por isso é que na Rádio Nacional, quando as pessoas foram rechaçadas a caminho do Palácio antes de mandarmos tomar a 7ª Esquadra, continuou-se a apelar para que as pessoas fossem para a Rádio, dizendo que a manifestação era lá. Eu próprio fui ao Sambizanga buscar população – coitados muitos acabaram por ser mortos – com dois autocarros voluntários para ir para à Rádio. Não foi a 9ª Brigada como tal. Eu é que disse a população para entrar nos autocarros e ficar em frente à Rádio. O mentiroso do Higino (Carneiro) disse que foi ele quem foi lá desfazer. É mentira! Ele não desfez nada porque não estava lá. Havia sim um cubano, o Moracem, mais o Onambwé (Henrique Santos), o José Maria que até estava a vir com um tanque contra o meu carro e eu esquivei-me para não ser esmagado, já na segunda fase em que estávamos para tomar a Rádio. Só não retornei à Rádio, porque vi tropas cubanas chegar pelo lado da Escola Comandante Gika. Eu estava pronto para varrer aqueles dois. Caramba, como hoje me arrependo de não ter feito. Era o Delfim de Castro, outro que era comandante da Guarda Presidencial, mais uns dois tropas e já tinham feito razia à população. E eu fui ter com eles, peguei num BRDM e nuns tropas e disse: “Vamos lá tomar aquilo, mas ninguém dispara. Eu vou ser o primeiro a perguntar o que é que se estava a passar”. Eu tinha bala na câmara e estava pronto, mas eles estavam com armas, mas viradas para cima e disse para mim mesmo, que não “podia matar esses gajos dessa forma”. Eu ainda perguntei quem eram, mas depois vi os tanques a vir e pensei cá comigo que a guerra havia de começar. Então dirigi-me para o comando da 9ª Brigada para ver o que ia acontecer. O que aconteceu é que, como não estava nada preparado para um golpe, na 9ª Brigada onde supostamente deveria estar a funcionar o estado-maior especial, não estava ninguém. E quem deveria dar o sinal para começar a ripostar os cubanos, porque nós tínhamos capacidade de fogo, tinha que ser o Bakalof (Ernesto Eduardo Gomes da Silva), ou o Monstro Imortal (João Jacob Caetano), apesar de não estar tão envolvido, ou Nito Alves. Mas nenhum deles estava lá. A tropa veio ter comigo a perguntar: “Comissário vamos fazer o quê?”. Eu respondi que não era da minha responsabilidade e para, via rádio, chamarem o Bakalof. Eu não podia decidir sobre o que poderia conduzir à uma guerra aqui em Luanda. Eu era apenas capitão, não podia assumir essa responsabilidade de comando. Mas, como disse, quando a população recuou do Palácio onde estava programada a realização de um comício de protesto, concentrou-se depois em frente à Rádio Nacional, na expectativa de ouvir alguém falar. E não houve ninguém. Quando demos por ela, os efectivos da Polícia Nacional estavam a disparar contra a população. Eu tomei conhecimento disso via rádio. E o Petroff foi quem comandou esse massacre contra pessoas desarmadas. Eu ouvi a comunicação num dos rádios que o Bula levava. Ouvi também o Onambwé a dizer: “Também estás com muito medo, estás com muito medo, não é assim?”. E ele respondia dizendo que “o povo estava a vir”. Então eu disse que tínhamos que eliminar essa força policial, que estava a vir na frente. Fomos até ao Palácio, corremos com a Polícia e com um BRDM e mais 10 homens tomamos a Rádio Nacional primeiro. Fui eu quem disse para irem para lá, não matar ninguém, não fazer feridos mas distribuir pontapés e chapadas e receber as armas aos policias que estavam a investir contra a população. Eles foram e cumpriram a missão. Se tivéssemos que matar, eles estariam mortos porque tínhamos meios, preparação e éramos especialistas nisso. Enquanto decorria essa acção, seguimos para a 7ª Esquadra (ao lado do Jumbo) onde se encontrava o Petroff. Os efectivos da Polícia que estavam lá colocaram-se em debandada e esconderam-se naquelas casas que ficam na parte de trás da unidade. Os nossos efectivos, mais jovens, correram, acabaram por detê-los e foram levados para a 9ª Brigada. Postos lá, o Petroff, medroso – sabia que ele deu um tiro no próprio dedo? – rebolava no chão, supostamente com dores. Comunicaram, via rádio, que o comandante Petroff estava a passar mal. Meu caro se houvesse intenção de matar dirigentes, como dizem que nós é que matamos os comandantes, eu não autorizava que o Petroff fosse levado ao hospital. Fui eu quem autorizei.

Quem autorizou a saída do Petroff daquela unidade foi você? Ele não saiu, como se disse, no quadro de uma encenação em que Mello Xavier apareceu com uma ambulância, vestindo uniforme de médico?
Sim, fui eu quem autorizou e quem o levou foi o meu motorista, no carro do Saydi Mingas. Fui eu, Luís dos Passos, quem autorizou que o Petroff fosse levado para um hospital.

Disse que foi você quem autorizou que levassem Petroff para o hospital, na viatura de Saydi Mingas. Mas ele (Saydi Mingas) também estava detido na 9ª Brigada? Como assim?
Sim! Saydi Mingas estava lá, detido na 9ª Brigada, e o carro também. Estavam lá detidos também o comandante Bula (José Manuel Paiva), o comandante Nzagi (Eugénio Verissímo da Costa), o comandante Dangereux (Paulo Mungongo), o comandante Petroff (Santana André Pitra) e o comandante Che Guevara (Garrido). E isso porque quando há uma insurreição, todos os adversários ou quem possa oferecer resistência devem ser detidos. E foi o que aconteceu. Mas nunca houve intenção de os matar. Se assim fosse, o Petroff, que mandou a Polícia disparar contra a população, não teria saído de lá. Não havia interesse nenhum vê-lo a contorcer-se com dores, e por isso, ordenei que o levassem para o hospital. Naquele momento, por ausência dos demais, a autoridade máxima naquela unidade era eu. E foi assim que ele se safou. Não voltou mais. Colocou também a questão sobre a suposta intervenção do doutor Banana (Mello Xavier) e que foi ele quem levou o Petroff. Isso é mentira, até porque eu já conhecia bem o Mello Xavier, sabia que nunca foi médico. Que eu me lembre, ele nem o 5º ano fez. Eu conhecia-o do Liceu Paulo Dias de Novais. Quando havia provas de frequência, inventava sempre situações para escapar-se e até há uma cena engendrada em que supostamente fracturou os dois braços, envolveu-os em gesso, mas era só para não participar nas provas. Só que uma professora encontrou-o de noite a tocar piano numa festa. Ele já tocava nos The Five King. No pós-independência, uns meses antes, quando regressou de Espanha, apareceu alegando que era empresário do Joselito (cantor espanhol nos anos 60/70) para ver se ganhava algum dinheiro. Portanto, ele não conseguiu enganar-nos. Todos sabíamos que ele não era médico. O Che Guevara também não teve problemas, porque quando foi detido ele próprio colocou a questão nos seguintes termos: “Meus filhos, afinal é para lutar contra o Iko Carreira? Se soubesse eu saia logo de manhã convosco!” E deixamo-lo solto. O Tino Cabuato, esse mau, mijou-se todo mas ninguém o prendeu, porque era um borra-botas. Não valia nada, não tinha importância nenhuma. Quero recordar e esclarecer também, ainda sobre isso, que nós não tínhamos nenhuma ambulância para transportar toda essa malta para o Sambizanga. Eles foram transportados da unidade para o Sambizanga, para a casa do Kiferro, num carro normal.

E como é que eles depois apareceram mortos?
Foram fuzilados em casa do próprio Kiferro, e isso pode ser confirmado junto da família dele, por exemplo da Carla, sua irmã, que foi vice-governadora de Luanda. Eles foram fuzilados por um homem da DISA, conhecido por Toni Laton, que apareceu lá sem se saber como, e, provavelmente, com a ajuda de alguém, colocou os corpos numa ambulância que depois foi encontrada naquelas barrocas entre o Sambizanga e o Miramar.

Mas então eles não foram fuzilados pelos “fraccionistas”?
Não! Isso não é verdade. Foram todos fuzilados ali sim, por esse tal Toni Laton, que disparou indiscriminadamente para o compartimento onde eles estavam fechados. Os meus detractores, como o Silva Mateus, para ganhar alguma cotação no MPLA, dizem que foi o Luís dos Passos quem matou. São mentirosos. Se tivesse sido eu, não teria dificuldade de dizer que fui eu. Os militares entrariam em acção para no palácio pressionarem Agostinho Neto a afastar corruptos e inconsequentes! Mas não houve necessidade de fazer isso, até porque se houve orientação de cima para fuzilar – e não havia – seria o Zé Mingas quem teria que dar a ordem. Mas não deu e não daria essa ordem, por motivo algum. Porque motivo ele havia de mandar matar o próprio irmão, o Saydi Mingas? Fazia sentido isso? No nível de conflito que existia, havia motivo para o Zé Mingas dar ordem para matar o próprio irmão? Não havia? Outra questão que é importante recordar, é que foi o Zé Mingas quem me entregou a lista elaborada pela DISA para levar ao Nito Alves e ao Zé Van-Dúnem, onde estavam referenciados os 70 indivíduos que deveriam ser presos antes, entre 23 e 25 de Março, quando se fez a primeira previsão da insurreição. E nessa lista não constavam os nomes de Nito Alves nem o de Zé Van-Dúnem. E quando eu perguntei porquê, ele disse-me que o objectivo da DISA é que eles deveriam ficar em liberdade, para continuar a atrair gente que eles continuariam a prender. Um truque que já era utilizado pela PIDE. Portanto, o que estava preparado é que eles ficariam ainda mais tempo soltos, para atrair mais gente. E durante aqueles dias, eles estavam a preparar a cadeia de S. Paulo para receber esses presos. O Hélder Neto foi encontrado as cinco da manhã na cadeia de S. Paulo, porque estava lá a executar trabalhos para receber essas pessoas. O Carlos Jorge também estava noutra cadeia, na Casa de Reclusão, a fazer o mesmo trabalho. Por isso é que a tropa da Direcção Política quando foi à casa do Carlos Jorge não o encontrou. Mas, abro aqui um parêntesis para dizer que, contrariamente ao que escreveu um tal Queirós, eles não foram assassinados pelo Borges Kiabukissa (citado no Relatório do Bureau Político do MPLA), o homem que me ia substituir nessa área de organização partidária, que chefiou a operação da ida a casa do Carlos Jorge. Ninguém abria a porta, e quando ela foi arrombada, a mulher dele atirou-se contra o primeiro soldado que estava a frente. E no puxa daqui puxa dali, a arma disparou e ela ficou ferida no braço. Depois de comunicarem a ocorrência por rádio, eu orientei que levassem a senhora para o hospital. E assim se fez. A senhora, acompanhada por dois homens, foi levada para o hospital. Isso atesta que não havia intenção de matar ninguém.

Nessa Declaração do Bureau Político constam vários nomes de acusados…
Sim! Estão lá vários nomes, mas o que se diz sobre a actuação de cada um não é tão verdade assim…

Refere-se por exemplo que com a ajuda de Luís dos Passos e Rafael dos Santos, das FAPLA, constituíram três esquadrões da morte chefiados por esses dois responsáveis e por Sidónio Borges, da DISA, e dos quais participaram entre outros, Manuel Albino Gonzaga “Chiquinho”, Piko Madiwana, Caló, Barreira da Morte, Catalahadi e elementos da Guarnição do Comissariado Político. Estes grupos, de acordo com a declaração, deveriam liquidar os responsáveis do Comité Central, do Estado Maior e da DISA visados segundo um plano preparado por Manuel Gomes, um antigo comando que Nito Alves coloca na sua supervisão dos assassinatos…
Eu não conheci esse tal Sidónio, nem esse tal Manuel Gomes, referenciado como comando. Isso foi tudo uma história inventada para justificar o que depois fizeram. Foram buscar nomes de pessoas que já estavam presas e talvez mortas, e puseram nessa declaração. Quando os homens (presos) foram levados para o Sambizanga e depois aparece o tal Tony Laton que os fuzila, puseram os corpos numa ambulância que saiu de lá para as Barrocas do Miramar. O único que saiu de lá vivo foi Ciel da Conceição “Gato”. Mas ele devia contar a história de como é que depois de regado com combustível (gasóleo) e de terem ateado fogo, conseguiu safar-se. Por outro lado, estavam lá dois colaboradores do Nito Alves, que também foram fuzilados. O NZagi, que alguém de uma família veio dizer que foi apanhado depois, mas eu não confirmo porque sei que estava lá nos quartéis de manhã. O NZagi era colaborador de Nito Alves e o Eurico era outro amigo dele. Se eram colaboradores de Nito Alves, o chefe deles, o Zé Mingas, não ia dizer aos demais para levarem o seu próprio irmão, Saydi Mingas, para que o fuzilassem e queimassem. Até hoje pergunto-me como é que o NZagi apareceu morto nesse grupo? Só pode ser porque eles precisavam de criar um álibi para nos matarem. E morreram todos, incluindo o Saydi Mingas. Reafirmo que não houve nenhuma tentativa de golpe e aquilo foi um falhanço, porque Nito Alves nunca pensou em fazer um golpe. Se tivesse pensado em golpe, teria sido melhor. E foi por não pensar em golpe, que alguns generais recuaram, disseram logo que não participariam. E foi o que aconteceu. Mas não havia, de facto, um plano estruturado. E quando as coisas correram mal, já não deu para fazer mais nada. A maioria dos meus colegas, a excepção daqueles que foram até ao Piri e que éramos cerca de 100, pensaram que seriam julgados. O Galiano, o Kitumba, o Betinho, o Mbala e outros, toda essa gente que foi fuzilada, pensava que havia de ser julgada e que teriam a oportunidade de fazer a sua defesa, porque achavam que do ponto de vista dialéctico, tinham razão. Eu só escapei porque não acreditei nisso. Tenho um primo que chegou a vice-presidente do MPLA, no Congo, o José Domingos Kiosa, que contou um dia ao meu irmão Boaventura Cardoso, quando fez uma viagem em serviço pela Nigéria e por aí fora, que estava refugiado há bastante tempo porque Agostinho Neto tentou matá-lo. Atiraram uma granada em sua casa, no Congo, e um dos filhos até ficou deficiente de uma perna. E depois também contou a história do Mathias Migueis, que foram enterrados vivos e deixaram-nos com as cabeças de fora, ao sol. Conhecendo todos esses casos, fiquei com a percepção de que havia muita coisa mal esclarecida. Já um primo meu, que estava na FNLA, o Rosário Neto, filho de uma prima, a Júlia Filipe Barroso, uma referência nossa em Malanje porque foi organizador das lutas na Baixa do Cassanje e fugiu mesmo de Malanje para o Congo Kinshasa, foi morto a mando de Holden Roberto. Então naquele momento pensei nessa história do Domingos Kiosa e não tive dúvida de que Neto havia de mandar matar-me. Contrariamente ao que os outros pensaram, eu achei que tinha que me pôr à fresco. Mas também não fugi de forma atabalhoada. Não! Fui para casa arrumar as minhas coisas. Não deixei vestígios, contrariamente aquelas fotografias que apareceram e do que se escreveu que encontraram armas em casa do Luís dos Passos, incluindo caçadeiras. Tudo isso foi mentira. Não deixei nada disso. Até a máquina policopiadora enterrei; papeis, livros sobre Fundamentos da Teoria Marxista Leninista, de Constantinov, que naquela altura consumíamos, tudo isso enterrei. Não deixei nada. Despedi a minha mãe que estava preocupada. Nem sequer disse nada aos meus irmãos. Sabia que eles não iam pegar-me facilmente. Mas se fossem até minha casa tinham que ir com tropa preparada para o combate, porque eu podia matar alguns. Não aceitaria entregar-me, como aconteceu com os outros. Sairia a disparar, a matar e eles a disparar e a matar. Seria um combate sério ali à porta. Não sairia assim. Eles só foram à minha casa muitos dias depois.

Fugiu com o Nito Alves ou ele estava, como se diz, sob custodia da embaixada da URSS?
O Nito Alves fugiu por Caxito.

Mas há uma versão alimentada por cubanos, que diz que ele esteve na embaixada da União Soviética e foram eles quem receberam o Nito Alves. Não é verdadeira?
É falsa. O Nito Alves saiu de Luanda para o Piri. Chegamos no mesmo dia e encontramo-nos com o Bakalof e o Bagé, que fugiram separados, mas com os seus motoristas e guardas. O motorista do Nito, o Audácia, também foi fuzilado. O Bakalof levou dois motoristas, o Será e mais um outro. Eu fugi por Pango Aluquem. Segui por Maria Teresa, entrei pelo Cuanza Norte, cortei por Pango Aluquem e depois fui parar a Quibaxi e ao Piri. Chegados lá, conversamos sobre o que havíamos de fazer, guerrilha, por exemplo. Recusamos fazer guerra, mas concordamos que teríamos que estar melhor organizados, o que não fizemos antes. Eu também tinha uma noção muito vaga sobre isso, porque já se dizia, na mata, que vamos ter grupos em Malanje, Huambo e em mais províncias; que vamos atacar o nosso adversário porque senão matavam-nos. Já viu o que seria se 20 mil homens, com toda a 9ª Brigada, tivessem fugido para a mata? Eles não conseguiriam apanhar-nos. Podíamos morrer de fome ou de outra coisa qualquer. Depois enfiados numa mata sempre te safas. Estive lá 12 anos e sete meses e sempre me safei. No grupo de Nito Alves éramos 22, mas fomos diminuindo e ficamos 17, separados, porque uns, tal como o Bakalof, eram de Nambuangongo. Eu, o Bagé e o Nito Alves ficamos no Piri, numa zona em que havia um rio no meio, o Dange lá em cima e Dande aqui em baixo. Certo dia saí com o Bagé para fazer reconhecimento, para ver quem era o comandante que andava por lá. Eles tinham enviado o Margoso. E ficamos ali a recolher informação. Depois de cumprida a missão de reconhecimento, não conseguimos voltar porque acabou-se a carga da bateria do rádio. E já havíamos sido atacados e nesse ataque prenderam todas as mulheres, entre as quais a Boneca, a Fé Narciso (irmã do Tany Narciso) e Virinha (Elvira da Conceição), comandante do Destacamento Feminino, a unidade que foi atacar a Cadeia de São Paulo para libertar os presos. Essas quatro estavam lá. A Nandy, estava grávida, havia sido presa com o Veloso em Catete, e fugiu pela linha férrea. Como diziam na RNA, puxou pela pistola para tentar matar-se e o Veloso não deixou. Estávamos lá todos com essas senhoras.

Todas essas pessoas que está a referenciar, foram mortas depois de terem fugido?
Foi um mês depois do 27 de Maio. Eu acabei por ficar separado do grupo e sem saber como contactar com os seus integrantes. E em 13 ou 14 de Julho, o Nito Alves foi preso. Ele foi pedir informações a um familiar (primo) numa lavra, um velho chamado Simão, e esse indivíduo traiu-o. Denunciou-o às tropas que estavam por lá, dirigidas por Margoso. Para entreter Nito Alves, mandou matar uma galinha, já que ele estava com fome e cansado. Mas, afinal era uma armadilha. Quando Nito Alves deu conta do movimento de carros que estavam a chegar junto à cabana na lavra, como era guerrilheiro, conseguiu escapar-se rapidamente. Um nosso companheiro, da 9ª Brigada, que o acompanhava, o Cavongota, também tentou escapar, mas levou um tiro na barriga e morreu ali mesmo. O Nito Alves ainda conseguiu sair dali. Mas como as lavras de mandioqueiras naquela zona dos Dembos são muito fechadas, não conseguiu ir muito longe. Ficaram ali aos tiros até de manhã, e Nito Alves ainda feriu sete dos seus perseguidores com a única pistola que tinha. Eles ficaram a pensar na certa: “Se com uma pistola ele feriu sete, estamos mal se continuamos aqui”. Então, para não continuarem a ter feridos e problemas, foram à uma sanzala do Piri, pegaram na população sob ameaça de armas, e meteram-na na plantação para “apanhar o vosso filho, senão vocês morrem todos”. Quem comandou essa operação foi o Margoso, esse que durante a guerrilha foi da UPA e muitas vezes já tinha ameaçado essa população de morte. Ele foi major, membro do Comité Central. Ele ameaçava a população que se não entrasse para a UPA seriam todos liquidados. Um dia o Margoso chegou sob ameaça de que se a população não fosse com ele para a mata, ele havia de mandar o quiçonde (formiga que actua em grandes concentrações como um exército). Havia uma senhora, Antonica Domingos Fula, mãe desse individuo que foi vice-governador do Bengo, que no meio de tanta gente que já tinha apanhado surra das tropas da FNLA, entre os quais o Ho-Chi-Min, respondeu: “Olha comandante Margoso na minha sanzala diz-se: quando o quiçonde está para atacar, devemos preparar lenha com fogo para combatê-lo”. Ele, claro, não gostou. Respondeu que a população do Piri era “refilona. Um dia vocês vão ver”! E as populações retiveram tudo isso. Quando aconteceu o 27 de Maio, o MPLA e a DISA pegaram num antigo chefe de posto colonial muito mau, o capitão Carlos, ex-colaborador da PIDE, e puseram todos esses contra o Nito Alves. Logicamente que o Margoso estava interessado em ver o Nito Alves morto. Aliás, para além de ser um adversário de Nito Alves nas matas, foi ele quem prendeu e mandou matar a Deolinda Rodrigues e outras e outros… Toda a gente naquela região sabe quem foi o Margoso. O tal Carlos, de agente da PIDE que andou a prender e a matar gente no Piri no tempo colonial, passou a capitão das FAPLA. Logo, duas pessoas muito interessadas em mostrar serviço.

Mas, de acordo com um livro editado recentemente, o general Higino Carneiro diz que foi ele quem dirigiu a captura de Nito Alves…
Eu nunca soube que o Higino Carneiro estava naquela zona. Eu tenho que desmenti-lo publicamente. Eu fiz reconhecimentos e nós tínhamos a informação toda de quem estava lá. Nós fazíamos incursões com regularidade. Eles pensavam que nós entravamos quando escurecesse, mas não. Antes de escurecer, por volta das 18:30, nós já estávamos lá dentro da vila. Tínhamos os nossos pivôs que nos davam a informação toda. E nunca falaram dele. E para já, é bom que ele saiba, não estamos aqui para esconder nada. O melhor local que tínhamos para nos escondermos era o mais próximo possível deles. E nos estávamos há menos de um quilómetro do quartel. Nós ouvíamos todo o barulho que faziam, até as conversas. O Bagé, estratega como era, disse logo que o melhor local para nos escondermos era o mais próximo deles. E o local escolhido foi à beira da estrada, numa picada que ia dar à uma fazenda próximo do Piri. Escondemo-nos ali durante sete meses. Dormíamos ali a vontade e de manhã estávamos prontos com as mochilas e armas. Mas foi aí onde ficamos durante sete meses. Eu contactava com frequência os nossos pivôs, e nunca foi confirmada essa versão do “Soldado da Pátria”, que escreveu (ou alguém escreveu por ele) a dizer que esteve lá. É assim que as filmagens mostram também a prenderem o comandante Bagé, e que ele estava por cima do tanque. Ninguém estava por cima de tanque nenhum, porque, primeiro, não se deve ficar por cima de um tanque porque tornamo-nos alvo fácil de se abater. Nem é verdade que ele dirigiu a operação da Rádio. Também ouvi que um jornalista, cameramen, filmou. É tudo mentira. Há muitos oportunistas que apareceram por aí.

Durante a sua longa estadia na 1ª Região, ouviu falar de uma zona com a denominação de Bernô?
Era de facto uma zona da 1ª Região, tida como intransponível, durante a guerra contra o colonialismo. Mas o que se passou é que, a determinada altura, ficaram sem munições. E então, uma arma servia para três guerrilheiros e podia ter apenas duas a três balas. Eles chamavam de “balas sebadas”, porque como estavam todas muito húmidas, era preciso abrir e apanhar pólvora de outras munições de fabrico português (ou ocidental) e voltar a colocar e fechar. Já não havia munições, mas mesmo assim, uma mina que montavam para uma viatura era uma autêntica bomba. Os sapadores que eles tinham fabricavam alguns engenhos, que faziam muitos estragos. Eram perigosíssimas. Os guerrilheiros da 1ª Região eram os mais activos, e por isso é que os portugueses tiveram inúmeras baixas nas zonas dos Dembos. Mais do que em qualquer outra zona de intervenção do MPLA. E não se esqueça que na 1ª Região, os anos de serviço da tropa portuguesa, tal como na Guiné, eram apenas dois, quando noutras eram três anos. E isso porque para sair vivo dali, era preciso muita sorte. Por outro lado, é preciso ter em conta que aquela região está ao alcance de dois aeroportos, o de Luanda e o do Negage, e as fazendas Santa Eulália e Maria Manuela serviam de aquartelamento das tropas e da logística, bem como outras fazendas que estavam em funcionamento. Os tiros de canhão estavam ao alcance de qualquer base. Então aquilo eram bombardeamentos a noite inteira. Mas mesmo assim, essa população foi tão resistente que nem com os helicópteros Puma, como dizia Lúcio Lara, conseguiram. Mas lá no Leste, os guerrilheiros tiveram que fugir, embora digam que recuaram estrategicamente. É mentira! E o que dizem esses mais-velhos todos que andaram pelo Leste, o Bassovava e outros, que estavam cansados de uma guerra de 14 anos, não… não… não… é preciso fazer bem as contas, porque matematicamente, não dão certo. Eles foram para o Leste em 1966/7 e para 1974 (altura em que teve lugar o decretar do fim da guerra contra o colonialismo) são sete anos, enquanto que, na 1ª Região, entraram em 1961 e fizeram 13 anos. Portanto, o Dangereux e toda essa malta que esteve no Leste, que não nos venham dizer que estiveram lá 14 anos, porque isso é mentira. Na 1ª Região, a guerrilha começou como luta de resistência popular, porque os portugueses, a determinada altura, começaram a bombardear as populações e elas encontraram segurança nas matas. Naquela fuga, em 1961, para sua própria proteção, sentiram necessidade de se organizar. Foi assim que o Monstro Imortal e outros, atacaram as cadeias e os quartéis do Úcua, mais outros pontos aqui e ali. Mas, é claro, com armas rudimentares que foram conseguindo nalguns sítios atacados. A população, para fazer resistência, escondeu-se nas matas. Mais tarde, uns regressaram e foram integrados nas tais “Sanzalas da Paz” mas outra parte continuou nas matas e para sobreviver, continuaram a fazer lavras. Não havia nenhuma intervenção do MPLA. É mentira! E por isso é que muitos mais-velhos naquela altura, por exemplo o pai do Bornito de Sousa, aderiram primeiro à UPA. Era o movimento mais conhecido. Não era o MPLA. Essas populações começaram a fazer resistência, organizam uma pré-guerrilha e criaram obstáculos para dificultar a penetração das tropas portuguesas nessas áreas. Depois apareceu uma grande figura, que foi de facto o primeiro grande comandante da guerrilha na 1ª Região. Trata-se de Ferraz Bombo Mainga “Ferraz Bomboko”. Ele já tinha passado pelo exército colonial, possuía muita experiência, capacidade e era muito rápido a reagir. Ferraz Bomboko actuava tanto do lado da UPA como do MPLA, e era chamado pelos dois lados quando havia ataques fortes das tropas portuguesas. Ele não tinha problema. Só alguns anos mais tarde é que ele se integrou no MPLA. E essas populações que foram para a 1ª Região ficaram a fazer resistência até que, chegou, em 1966, o grupo dirigido por Monstro Imortal, que em 1962 foi para o Congo, na expectativa de regressar o mais rápido com homens mais bem formados e preparados. Mas, já naquela altura encontrou muitos problemas na direcção do MPLA, infestada de traidores, que diziam que não era possível, não deveriam regressar. E isso estendeu-se até 1966. Isso foi contado por ele, por Bakalof e outros, bem como aquela cena das armas e das munições trocadas. Portanto, as divergências já começaram há muito tempo. Os problemas de racismo sempre existiram no seio do MPLA. Aquele complexo do negro colonizado, levou a que o chefe deles promovesse brancos e mulatos. Não era possível ser guerrilheiro e fazer três cursos superiores. Isso só foi possível, porque alguns passavam o tempo todo a estudar mas eram considerados guerrilheiros. De quê? De gabinete? Não brinquem com coisas sérias. Então começaram a surgir divergências sérias por causa da promoção que se fazia de brancos e mulatos. E foi assim quando eu também entrei. Isso era o complexo do colonizado, que acha que o branco ou o mais claro é superior. Mas nós naquela altura, em 1974, já vivíamos numa sociedade ultra-moderna em Angola e já não pensávamos como eles. Os nossos compatriotas, familiares, amigos, brancos ou mulatos, dávamo-nos todos sem problemas nenhuns. Estávamos todos juntos nos bairros…

Era uma geração nova de angolanos formada com uma consciência diferente…
Sim! Nós, nos anos 70, já não pensávamos nisso, nem para namorar ou casar. Mas lá, essas diferenças estavam muito patentes. Há o caso dos kiokos que se revoltaram primeiro, e mesmo alguns do norte, lá no Congo, quando prenderam Lúcio Lara. Foi por causa de tudo isso. Porque começaram a ver que havia uma certa primazia em relação aos mais claros, criada pela própria direcção do MPLA. Todos começavam juntos, como guerrilheiros, mas quando chegasse a altura de escolher quem ia para a cozinha ou para a guarda, o chefe era sempre mulato. E nós questionávamos porque razão se fazia isso? Todos podíamos estar nesses lugares. Isso era complexo que eles tinham. E essa foi a causa da “Revolta do Leste”.
O Daniel Chipenda foi enviado para falar com os kiokos, porque ele era poliglota e falava bem todas as línguas, e por isso foi indicado para apaziguar a situação com aquela gente toda que estava revoltada. Mas, depois também foi considerado como integrante do grupo da“Revolta do Leste”. Mas ele foi indicado por Agostinho Neto para ir lá ajudar a resolver a questão, mas os kiokos não viam com bons olhos essa gente. Eu falei com o Chipenda. Neto deu depois a volta e colocaram-no nessa situação. Mas, foi porque ele tentou apaziguar os conflitos que haviam no MPLA, que se foram agravando, agravando ao longo dos anos, até que se chegou ao 27 de Maio, ao fraccionismo. E o Neto só chegou a Luanda e se torna presidente, com suporte de Nito Alves. Todos sabemos disso, porque no Congresso de Lusaka, Daniel Chipenda tinha tudo para ser eleito presidente do MPLA. Nito Alves era o representante da zona de guerra contra o colonialismo mais respeitada, porque era mais dura.

Então Agostinho Neto acabou por matar quem mais o defendeu?
Foi exactamente isso. Mas, segundo Nito Alves, nas conversas que tive com ele, nesse congresso todos estavam contra Agostinho Neto. O argumento foi que o método utilizado para criticar Neto é que não foi apropriado. Até Lúcio Lara, Iko Carreira e outros estavam todos contra Agostinho Neto. Nito Alves quando viu aquela situação, achou que entre todos eles o que ainda era melhor era o próprio Agostinho Neto, e inverteu o discurso que fez naquele congresso (o primeiro) de Lusaka, realizado em Agosto de 1974. Ele tinha preparado um discurso muito impulsivo sobre a situação da 1ª Região porque estavam abandonados, tinham falta de tudo, desde o sal aos medicamentos sem justificação; faltavam munições que eles precisavam para atacar posições portuguesas. E o Nito Alves chegou lá, virou o discurso. Fez outro em defesa daquele que depois o matou. Mas é preciso que se diga, que no dia 22 ou 23 de Maio, Nito Alves e o José Van-Dúnem ainda almoçaram com Agostinho Neto. Depois daquela expulsão do Comité Central, no dia 21, anunciada durante aquele comício no Pavilhão da Cidadela Desportiva, Neto chamou os dois para almoçar. Quando alguns, como Pacavira e outros, diziam que eles deveriam ser presos, Neto disse que não, que era uma divergência mas tinha que ser vista. E isso porquê? Porque segundo o que me disse Nito Alves, Neto utilizava sempre a mesma artimanha e perguntava: “Camarada Nito para fazer uma revolução séria com quem podemos contar?” E Nito Alves indicava alguns nomes. Ele, como era delfim de Agostinho Neto, perguntava-lhe o mesmo. E ele repetia os mesmos nomes: “O Iko Carreira é um preguiçoso, o Lúcio Lara também não dá nada”. Repetia sempre o mesmo ‘disco’. Até que Nito Alves percebeu o jogo, porque viu que Neto queria é saber dos nomes que ele tinha como proposta. Estava apenas a passar informação. Mas continuou sempre muito próximo dele. Agostinho Neto disse à Nito Alves, durante o almoço depois da expulsão, que não haveria problema algum, que iriam ocorrer apenas algumas reformas, mas era necessário ter calma. No dia 25 de Maio, o tal dia que se diz que deveria ter acontecido a insurreição e falhou, o Nito Alves foi ao Palácio avisar Neto que haveria de meter as ‘massas’ (população) na rua. Ele recebeu essa informação na noite do dia 25. Algumas reuniões eram feitas numa casa situada no interior do bairro que hoje se chama Hoji-Ya-Henda, próxima do restaurante Mãe Preta. Fui informado nesse encontro, que Nito Alves disse a Agostinho Neto que meteria as ‘massas’ na rua. Aliás, nessa reunião, no Hoji-Ya-Henda, estavam lá todos os dirigentes de ‘massas’: entre os civis estavam o Mbala Bernardo, do programa radiofónico Kidibanguela, irmão do embaixador no Vietname, o Betinho, o Nzamba e depois havia os militares Nito Alves, Zé Van-Dúnem, Sianuk, Bakalof e outros. Todos estavam lá, quando ele passou essa informação de que avisou Neto que haveria de meter as ‘massas’ na rua. Não houve nada clandestinidade. Neto sabia de tudo e todos nós falávamos disso em nossas casas. Nada estava a ser escondido. Todo mundo sabia. A minha noiva sabia que havíamos de fazer uma manifestação. A dúvida que existia é se os cubanos se meteriam e se acontecesse, podia haver guerra. Eu disse à minha noiva que se eu morresse, ela que fosse a sua vida. Pronto! Podia morrer. Naquele tempo tínhamos espírito revolucionário. Reafirmei que se os cubanos entrassem, daríamos tudo por tudo, que haveria guerra e eu poderia morrer. “Amanhã pode ser o nosso fim” – disse e despedi-me dela assim. A reunião de concertação até estava para ter lugar no dia 21, no Museu, mas depois foi transferida para outro sítio, a casa do senhor Silvestre Capemba, um antigo preso político no tempo colonial, onde também se realizaram várias reuniões. Eu estive lá, e ouvi de Nito Alves a informação de que tinha avisado Agostinho Neto. Fui para lá porque pediram para aparecer com os assessores soviéticos, para falar com o Zé Van-Dúnem. Nessa altura também informei ao Nito Alves que um major cubano, de nome Vitória, disse-me que sabiam que estava a ser preparada uma manifestação, mas avisou que se ela tivesse a participação de militares eles iriam intervir. Se fossem só civis, estava bem. Mas se incluísse militares, eles iriam intervir. Disse-lhe também, que na 9ª Brigada decorreu uma reunião onde se condenou o Nito Alves. O tal major cubano até levou uma declaração com uma lista com nomes dos que assinaram, mas o Zé Candongo não aceitou assinar porque era contra o Nito Alves. Esse major disse-me também que “esse tinha que ser fuzilado já”. Eu evitei que ele fosse falar com o adjunto da Direcção Política, que era o Dino Matross (Julião Mateus Paulo). Atendi-o no meu gabinete, acompanhei-o a descer as escadas daquele prédio ao lado da Sociborda (na rua rainha Nginga), despedi-me dele e então fui comunicar ao Zé Van-Dúnem e ao Bakalof. Esse major cubano era nada mais nada menos, que o segundo homem que comandava os cubanos em Angola. Sabe o que é que o Bakalof respondeu: “Se os tanques saírem com os cubanos o povo subirá neles”. Fiquei intrigado com o que acabara de ouvir. E o Betinho, meu primo por sinal, disse pior: “Luís essa não é informação para trazer aqui!”
Respondi apenas: “Pronto! Está dito”. Quando sai dali, fui ter com os meus colegas e amigos lá fora, o Paulito, que era adjunto na FAPADA, o Salvador e o Zé Candongo e disse-lhes: “Epá! Estamos mal. Isso será um fracasso porque os cubanos vão intervir. Fui comunicar aos mais-velhos e responderam-me que o povo subirá nos tanques”. “O quê”? – perguntou o Salvador intrigado: “Vamos morrer” – disse. Respondi apenas que já estávamos metidos, que “havíamos de morrer”. Por isso é que me interrogo, porque razão não saíram todos de Luanda? Eles sabiam que os militares seriam mortos, fuzilados. Nós sabíamos. Os civis seriam presos e julgados conforme a implicação. Mas os militares não! Por isso é que fico parvo, não entendo como é que ficaram aqui sentados à espera.

E foram todos caçados, ou melhor, assassinados…
Foi demais!

Conviveu com Nito Alves no cativeiro, abordou tudo isso com ele, como é que o considerava e hoje, com outra visão das coisas, como é que o considera? Um herói, fabricado pela conjuntura? Como é que o considera olhando para esse passado?
Herói, não! Outro modelo, alguém que pretendia mudanças, que tinha outra perspectiva para o país. Mas, entre nós, apoiantes, havia muita confusão, muitas coisas com as quais não concordávamos. O Zé e o Nito também tinham divergências em alguns pontos, e acredito que mesmo que resultasse uma mudança, podia acontecer outra ‘revolução’ entre nós. Havia colegas militares que, pelo facto de estarem engajados nos preparativos da manifestação, já achavam que deveriam receber patentes de majores ou de capitães. O Tiago, por exemplo, dizia que “depois disso tudo só aceito a patente de capitão”. Eu e outros colegas, o Paulito, olhamos para ele e comentei: “Isso aqui está uma grande confussão. Tem a patente de segundo-tenente e só por participar nisso quer ser capitão? Só porque é amigo de Nito Alves? Caramba! Isso assim não vai dar”. Achávamos que depois de tudo teria que se fazer uma reforma muito profunda. Portanto, o Nito Alves era um jovem que tínhamos como inteligente, que teve a grande oportunidade de dar o seu contributo, mas também não conhecia a União Soviética que ele próprio apoiava. Se tivesse o conhecimento que nós temos hoje, ou que passamos a ter mais tarde, racistas como eles eram, não teria apoiado.

No meio de tudo isso, há também muita fantasia em relação ao tal apoio soviético a Nito Alves e Ze Van-Dúnem?
Muita fantasia. Apoio concreto e directo não houve. Eu estive em reuniões com o coronel Victor mas, de facto, ele nunca confirmou qualquer apoio. Eles queriam que se fizesse qualquer coisa, porque não queriam mais Agostinho Neto, mas não com envolvimento directo. Como quem diz: “Epá… façam, ganhem e depois vamos ver”. Para não perderem o tacho, de um lado ou de outro.

Sabia de algum projecto ou investigação da CIA, sobre os cenários com ou sem Agostinho Neto. Havia alguma coisa sobre isso?
Sim! Havia. Sabíamos disso, e por isso também estávamos com receio. E Nito Alves tentou sempre influenciar Agostinho Neto, dizendo que “eles próprios poderiam matá-lo, e que era preciso ter cuidado com os infiltrados da CIA no Comité Central e no Bureau Político, porque eles próprios é que poderiam liquidá-lo”. Mas, como Neto era amigo de Lúcio Lara, Onambwe e outros, não acreditava. Mas ele também tinha muitos problemas. Por essa altura, também já não conseguia discernir tudo o que se estava a passar e por isso perdeu-se no 27 de Maio. Ele tinha problemas grandes de dependência do álcool. Conheci um individuo angolano que foi guarda-costas de Agostinho Neto, que disse que ele bebia tanto whisky, que para a Maria Eugénia (esposa) não dar conta, ele escondia garrafas no autoclismo da casa de banho, daqueles que tinham o tanque por cima e uma corrente ou fio que se puxava para fazer a descarga. Só depois de morrer é que deram conta. Ele tinha graves problemas com o álcool, tanto que nessa última reunião do Comité Central em que expulsaram Nito Alves e outros, para ganhar coragem na tomada de decisão deixou por instantes a sala de reunião e foi enfiar uma boa dose de whisky. E quando regressou, sentou-se do lado onde estava o Lúcio Lara e disse: “Agora aqui não há presidente. Ganha o mais forte”. Foi assim que os cobardolas como Lopo do Nascimento, José Eduardo dos Santos e outros, todos esses que pareciam que apoiavam os ideais de Nito Alves, todos eles mudaram logo. Aliás, mesmo a seguir ao 27 de Maio, muita gente depois de presa apanhou surra para dizer se José Eduardo dos Santos estava ligado à nós. O Dedé, que esteve connosco no PRD, disse que apanhou muito para dizer se José Eduardo dos Santos estava ou não do nosso lado. E José Eduardo dos Santos só escapou porque quando o Onambwé estava preparado para ir buscá-lo, ele estava no gabinete de Agostinho Neto. E ele como podia entrar sem pedir licença, abriu a porta e disse: “Camarada presidente eu vim buscar esse fraccionista”. E foi Agostinho Neto quem disse que ele não levaria mais ninguém. José Eduardo já estava a transpirar todo. Era algo muito estranho. Imagine que quando o Loy (Pedro de Castro Van-Dúnem) estava com problema com o irmão que esteve envolvido, um capitão que pertencia à 9ª Brigada, o Xietu (João Luís Neto), chefe do Estado Maior General, telefonou para ele ir a casa dele aos gritos “os homens estão a vir, os homens estão a vir” – referia-se aos homens da DISA. O próprio Loy disse ao irmão para sair, fugir, porque todos tinham medo. Havia uma força “suprema” que tinha poder sobre todos, de matar, de fazer o que quisesse acima de tudo. Havia a DISA, mas havia também o grupo do Jutueira, que era a DISA infernal, porque ao lado deles ninguém piava. Eles prendiam, matavam, faziam o que quisessem. Havia uma força suprema que aterrorizava todo o mundo. Instalou-se um sistema terrível.

Após 12 anos nas matas dos Dembos, foi quando regressou que teve conhecimento da chacina que ocorreu, ou mesmo lá recebia informações sobre tudo isso?
Não! Não tinha conhecimento. Foi um choque terrível. Hoje lhe digo que se eu e o Bagé tivéssemos conhecimento de tudo isso enquanto estávamos na mata, fazíamos guerra de guerrilha e morreríamos por lá se necessário. Se eu soubesse que tinham assassinado tanta gente, eu não teria regressado. Sabe que, quando um individuo está na mata, mobilizando mais uns quatro, cinco ou trinta homens, podiam parar este país? E não é preciso atacar civis. Basta pontos militares. Basta montar algumas emboscadas nas principais estradas nacionais. Tudo pára e ninguém consegue localizar, porque um grupo táctico pequeno é suficiente. Não há problemas de comida porque andam por aí a deambular e ninguém consegue localizar onde estão. E depois, na mata, para um individuo guerrilheiro como eu fui, só precisa de uma arma para se defender e de uma catana. Foi assim que eu fiquei. Por isso é que não entendo como é que Nito Alves não preparou um plano estratégico de recuo, para que toda a 9ª Brigada fosse para a mata. Na mata há muita coisa que se come. Eu comi raízes, como a gingamba, que parece inhame, que é um tubérculo que ainda hoje como todos os dias de manhã. Aquilo é tão amargo que nem o javali come. Então é preciso primeiro ferver bem em rodelas e depois de 24 horas pode ser comido. E nasce muito por aí. E há outros tubérculos, bem como os frutos silvestres e depois ia bebendo maruvo que também sacia a fome. Já cheguei a alimentar-me apenas disso e de dendém durante quarenta e cinco dias. Comia 30 dendéns ao almoço e 30 ao jantar. Na mata sobrevive-se e para morrer como morreram aqui, era melhor terem ido para a mata. Eu quando fui para a mata, a primeira vez que saí para ir à caça matei uma pacaça. E pensei porque razão não recuamos todos e ficamos por ali em vez de se fazer aquilo que o Bakalof fez, estupidamente, ao vir para Luanda contactar a embaixada soviética, que são uns traidores e não prestam para nada. E posto aqui, a mulher, sobrinha do Mendes de Carvalho, tramou-o. Já tinha sido mobilizada pela DISA. Foi a própria mulher quem o traiu.

O Bakalof foi traído pela mulher?
Pois! O Bakalof estava comigo na mata. Ele e o Vicente Fortuna, que aparece em muitas fotos comigo e foi da Direcção Política. Ele, Vicente Fortuna, já esteva preso desde o dia 20, e quando acontece o 27 de Maio ele escapou da cadeia, cortou a barba e conseguiu furar até ao Piri. Depois de nos separarmos, em Dezembro, decidem regressar a Luanda para fazer trabalho de clandestinidade junto das embaixadas. Deixaram os outros na mata, e uns até acabaram por morrer de fome. Em Luanda foram traídos e mortos. O grupo de cerca de 100 homens, devia ter ido todo para a mata. Por isso não considero o Nito Alves um herói. Nunca disse uma coisa e até tenho asco em dizer isso. Mas, a si vou dizer porque jurei dizer toda a verdade: “Nós fomos cerca de 100 homens da 9ª Brigada. Éramos muitos e foi, como dizia Fidel Castro, com 100 homens que começou a guerra em Cuba e ganhou. Com 100 homens na mata armados… caramba. Eles não gozavam como gozaram connosco assim”. Eu nunca disse isso a ninguém mas a si vou dizer: “Todos esses homens, para além dos 30 ou 22 que fomos para as matas com Nito Alves, os chefes dos grupos da 9ª Brigada, o António Lourenço, que era sobrinho do Nga Kumona, o John, o Cavongota, o Vicente Fortuna, as moças, Vidinha, Fé Narciso (irmã do Tony Narciso era secretaria do Nito Alves), a Boneca e a Nandi que era das comunicações da 9ª Brigada, estávamos todos armados. E ele pegou naquele grupo, o grosso do grupo, e deixou-os ficar no quartel do Piri. Quando os homens da DISA chegaram com os cubanos – a população assistiu tudo porque era ela que nos dava de comer – aquilo foi saltar os muros e fugir para caminhos que não iam para lado nenhum, para o capim e depois tentaram apanhar a estrada e foram caçados aí e mortos. Foi carne para canhão. Nós estávamos do outro lado da mata e vimos tudo. É triste recordar isso”. Eram pessoas que podiam estar connosco na mata a sobreviver e até a fazer guerrilha. Foi o que eu e o Bagé fizemos. Sobrevivemos, mas só os dois não dava para fazer mais. Guerrilha?

Luís dos Passos como encara o pedido de perdão feito pelo presidente da República?
Foi um gesto magnânimo, bom, mas como não gosta de dar ponto sem nó, misturou tudo. Quando você pede perdão, num acto de contrição, você não deve dizer… “eu peço perdão porque você ontem também me fez aquilo…” ou “estou a pedir perdão porque o vizinho ontem me fez aquilo e também tem que pedir…”. O que a UNITA ou seus dirigentes fizeram, foi noutro contexto. A maioria dos casos a que estamos a fazer referência, as pessoas foram levadas de casa. Não misturem os casos, e por isso é que a Associação e a Plataforma não aceitam isso. Os nossos homens foram presos, mas levados de suas casas por agentes da Segurança de Estado. E ele começa logo no seu discurso por fazer referência à um grupo de jovens, cidadãos que intentaram um golpe de Estado. Qual tentativa de golpe de Estado se ninguém foi julgado? Como é que o presidente consegue afirmar que houve tentativa de golpe de Estado? Como? Ninguém foi julgado. Eu, por exemplo, podia dizer “peguem no Monstro Imortal e no Nito Alves porque esses é que eram os chefes”. Mas ninguém foi julgado. Então que tentativa de golpe de Estado se você não fez julgamentos, não provou nada? Foi falar dos mortos na Jamba, que outros também devem pedir perdão. Não devia ter misturado as coisas, até porque não escolheu a data de 27 de Maio por mero acaso. Foi pelo simbolismo que envolve a data. Para falar sobre tudo isso, escolhia o Dia da Paz e não o 27 de Maio. Por outro lado, é preciso não esquecer uma coisa. Como é que nós tomamos o poder? Como é que o MPLA chegou ao poder? Não foi por via de um golpe? Em 1975 não estava prevista a realização de eleições? Nós não demos um golpe e pusemos os outros na rua, os da FNLA e os da UNITA? Então não foram mortos aqui como galinhas, numa fuga atabalhoada e ao chegaram ao Dondo, precipitaram-se e atiraram-se ao rio. Não foram fuzilados. Estava lá o Bagé…

Tal como os do MPLA, também eles chegaram a Luanda desorganizados…
Ah sim! Chegaram muito desorganizados mesmo. E a FNLA mesmo com um pouco mais de organização, não conseguiu fazer nada. Pensaram que com aquelas cambalhotas que faziam, é que haviam de tomar o poder. Mas o MPLA foi esperto, deu-lhes a volta, armou a população e pronto. Mas nós demos um golpe. Por isso eu pergunto: Será que nós tínhamos que ser considerados golpistas e não tivemos legitimidade para fazer o que fizemos? Como é que o poder foi tomado aqui? Não foi depois de termos corrido com os outros e de termos ganho a guerra. Colhe isso de que fomos legitimados pelo reconhecimento do Brasil e de outros após a proclamação da independência? Mas, qualquer outro podia estar nas mesmas circunstâncias. Da mesma forma como tomamos o poder naquelas circunstâncias, a FNLA também podia tomar. Na escola politica aprendemos que quando o partido Y já não responde aos seus interesses, luta contra ele. E se eles dizem que estávamos para fazer um golpe de Estado, então que nos julgassem. Mas sabíamos que não o fariam, como fizeram com os mercenários porque perderiam. Mas então um movimento ou um partido como o MPLA que julgou mercenários, não conseguiu julgar os tais fraccionistas por tentativa evidente de golpe, como dizem? Porquê? Por aí iriam aparecer o tal Laton e todos os demais que são conhecidos, por exemplo por muita gente do Sambizanga. Há um largo grande onde as casas foram partidas naquela altura e aqueles que perderam as casas sabem como é que tudo começou, como é que mataram. O Kiferro barafustou muito por terem morto os comandantes em casa dele: “O problema que vocês vão me arranjar”. E a família dele tem muito a dizer. A Carla, irmã, uma vez veio dizer-me: “Olha Luís eu sou irmã do Kiferro”. Ela, se tiver coragem, pode testemunhar o que aconteceu com o Kiferro. Já há 20 anos atrás, ainda estava no PRD, depois de 2002 antes dos Acordos de Paz, nós fizemos uma reunião com o MPLA, onde exigimos que José Eduardo dos Santos fizesse o que o Presidente João Lourenço fez agora. Mário António (secretário do Comité Central do MPLA para a Informação) e outros mais-velhos não quiseram. Esse Dino Matross, o Bula e outros não aceitaram isso. E José Eduardo dos Santos também não aceitou. Mas isso é um plano escrito há muito, em 2002, mas eles não quiseram. Perderam essa oportunidade histórica. Mas também fazer como o presidente João Lourenço fez, não é assim… foi como que atirar novamente a culpa sobre nós. Como é que um chefe de Estado vai dizer que houve tentativa de golpe, quando ele sabe que não houve julgamentos? Como é que ele pode provar?

Luís dos Passos, o seu PRD morreu mesmo?
Morreu porque houve interferências. Sabemos que o Dino Matross, o Bornito de Sousa e outros criaram um grupo que falsificou os votos. Nós não estávamos assim tão mal em termos de votos que permitiam a nossa representatividade. Em 2007/8 fizemos um documento (que tenho aí) onde consideramos aquela proposta de MPLA de revisão da Constituição como um golpe institucional. Mas ao nível do parlamento, os demais partidos como a UNITA e outros, não deram relevância a isso. Ninguém quis saber disso. E foi o que fizeram em 2010. E então os indivíduos que ao nível dessa plataforma fizeram tudo para dificultar a nossa existência, depois até pediram desculpas porque “não era para acabar com o PRD, fizemos mal…”. Mas vendo as condições políticas em África, tudo muito complicado, achamos melhor ficar por aí. Eu estava mesmo preparado porque sabia que havia de colocar-me essa questão. A actividade que faz hoje a CASA-CE e outros que andam por aí à-vontade em contactos pelas províncias, era bem diferente que em 2008. Nessa altura, em Calussinga e em Nhareia, os nossos representantes responsáveis do partido foram presos, surrados por estarem a usar camisolas do PRD. E o chefe da esquadra obrigou-os a capinar à volta daquela unidade durante dois dias. Quando denunciamos isso, o Dino Matross disse que não era possível quando tínhamos provas. Em todas as províncias do interior, era muito difícil o desenvolvimento de actividades políticas. Éramos maltratados, escorraçados, enfim… e então tínhamos dificuldades de fazer mobilização. Mas havia uma condicionante ainda maior. Há gente que usava o 27 de Maio para desmobilizar as pessoas e elas fugiam, porque tinham medo que voltasse a repetir-se tudo aquilo. Muita gente desistiu com medo. O irmão do Mário António, o Fernando, que era das Obras Públicas, por exemplo, era director e sentiu medo de perder o lugar, que lhe tirassem a casa, porque era deles: “Como é que eu faço”? – questionou-nos. E eu próprio pedi a ele para não se meter nisso. O Henrique Júnior, que foi governador do Cuanza Norte. Mas deram-nos o seu apoio particular. A mulher dele foi ex-mulher de um “fraccionista” assassinado. Quando viu o papel do PRD chorou toda a noite. Ele veio ter comigo amedrontado porque tinham entregue um documento do PRD em casa. Eu também disse para ele não se meter e disse-lhe que precisávamos dele fora da estrutura. E muitos outros, porque de facto não podíamos ter toda a gente connosco porque vivíamos ainda numa espécie de clandestinidade. Em 1991 eu fui ao gabinete do Aguinaldo Jaime, e no dia seguinte foi publicada a informação num jornal, dizendo que o Luís dos Passos estava a mobilizá-lo para o PRD. O homem ficou preocupado e ligou-me a perguntar se eu tinha falado alguma coisa sobre isso e eu disse que não. Deixei de procurá-lo para não lhe criar dificuldades. Era tudo isso que vivíamos no nosso dia-a-dia.

Por essa altura, também se disse que fez um acordo com o MPLA em que recebeu 10 milhões de dólares…
Eu apresentei queixa e pus em tribunal o homem que mandou muitas bocas sobre isso: o [José] Fragoso. Infelizmente morreu no dia 23 de Maio (2021). Agora só estou a espera que o Silva Mateus também fale. Este caso já foi investigado por alguns órgãos de justiça, porque apresentei queixa e estava tudo encaminhado para o julgamento em tribunal mas, o senhor acabou por morrer. Mas também se eu conseguisse negociar esses 10 milhões de dólares, esse dinheiro não seria deles. É dinheiro do Estado. Mas, não conseguimos nada. Tudo isso é mentira, senão não estaria aí a lutar pela vida e a fazer uma fazenda em Malanje. Não sou tão parvo assim. Com 10 milhões de dólares estava “a fazer lavras” – como diz o outro? Na verdade, o que aconteceu e que motivou algumas pessoas a dizer isso foi o seguinte: Estrategicamente, nós víamos que era mais favorável o MPLA estar no poder do que a UNITA. Isso, no tipo de análises que se faziam naquela altura, porque a perspectiva era que se a UNITA estivesse no poder, também iria estar contra nós e lixar-nos. E nós tomamos conhecimento disso, quando fizemos a primeira visita ao Savimbi, quando estava instalado no Miramar. Quando o Savimbi chegou a Luanda, eu até pensei que nos contactasse. Mas, logo de seguida, ele disse publicamente que “não havia de falar com partidecos”. E eu, como naquela altura tinha boas relações com os representantes dos Estados Unidos da América que estavam em Luanda, chamaram-me e disseram que Savimbi queria falar comigo. Eu manifestei as minhas dúvidas mas, eles asseguraram que sim, porque tinha recebido orientação do Departamento de Estado. Não passou um dia, e o Salupeto Pena ligou para mim a dizer que “o mais-velho queria falar comigo”. Mas, qual era a estratégia dos americanos? É que nós estivéssemos subalternizados à UNITA, de quem receberíamos apoio porque os americanos não nos queriam dar directamente. Queriam que nós trabalhássemos em conjunto, para sermos a força persuasiva na mobilização dentro das cidades. E em função disso, até já havia muito dinheiro para recebermos de Savimbi, bem como viaturas. Um membro novo que era secretário-geral, o Vicente Júnior, já tinha feito altos contactos com o Savimbi. Mas eu não queria contactos com o Savimbi, porque na audiência que tive com ele – nós também éramos espertos – levamos os nossos mais-velhos, figuras como Eduardo Macedo dos Santos, o Arlindo Barbeitos, o Hugo de Meneses, o Joaquim Pinto de Andrade e o Justino. Fomos todos para além de nós ‘miúdos’, levamos esses mais-velhos. Começamos a conversa com uma saudação de satisfação do Savimbi, que até nos tratou como “maninhos” e o Eduardo Macedo dos Santos perguntou-lhe: “Não se lembra de mim”? E Savimbi respondeu que não. Eduardo Macedo recordou-lhe que quando “fugiu da FNLA, do Congo Kinshasa para o Congo Brazzaville, e ficou horas e horas à espera de uma audiência com Agostinho Neto, fui eu que o fui chamar e fiz tudo para você ser recebido”. E Savimbi recordou-se sim e manifestou satisfação. Hugo de Menezes, também o recordou de outro episódio: “Fui eu que estava no Senegal naquela altura assim… assim…” e ele certamente pensou de certeza que estava diante de mais-velhos dele e de outros da idade dele, que conheciam bem o seu percurso. Mas, depois da conversa (e afinal nós devíamos ter cuidado, mas também não falamos nada de segredo, porque nas tomadas daquela casa havia dispositivos de captação de som instaladas pela Segurança de Estado – quem me revelou isso foi o Nandó) o Savimbi disse que tínhamos que trabalhar juntos, muita conversa á mistura, e depois a saída ele juntou-se ao Tony da Costa Fernandes e ao Zau Puna e disse: “Fogo! Esse gajo do Luís dos Passos, 13 anos na mata e em vez de vir para a UNITA não. Esses gajos do Norte querem mandar em nós”. Foi o Tony da Costa Fernandes quem nos alertou depois: “Eiiiiii se o Savimbi vos apanha um dia à esquerda, vocês não escapam. Ele disse isso… isso… depois da audiência”. Eu sabia qual era o discurso dele: que os do Norte é que escravizaram os do Sul, aquelas teorias todas dele. E por isso é que nós dissemos que não faríamos essa aliança. Então, quando estamos nos dias próximos da guerra, o MPLA estava muito interessado em ter também uma aliança connosco e porquê? Porque conseguiu ter um documento do Departamento de Estado americano, em que se dizia que a UNITA se devia juntar a nós para fazer as campanhas dentro das cidades, e que “ofereciam” 15 milhões de dólares. Com base nisso, o MPLA teve um certo medo que fizéssemos mesmo essa aliança. Mas isso também confirmava que nós teríamos outros encontros naquela casa e que o Vicente Júnior é quem estava a impulsionar isso. Mas, entre Março e Abril, antes das eleições, o Vicente Júnior afastou-se e nós não fizemos a tal aliança porque eu, entretanto, converso com alguns amigos, entre os quais o Fernando Dias da Piedade “Nandó” e o Salomão Xirimbimbi (que também esteve preso no 27 de Maio), que me disseram: “Epá! Se vocês se juntam à UNITA e fazem uma aliança, agora vamos acabar todos”. Então, a saída era criar expectativa de uma aliança com o MPLA, até porque o MPLA vai ganhar a guerra e se não fizermos essa expectativa de aliança com o MPLA, vão matar toda a nossa gente nas províncias. O Silva Mateus e o José Fragoso disseram que “não, porque se houver guerra vamos todos fugir para as matas de Catete”. Eu perguntei-lhes se eles sabiam o que era a mata. Mata era bom na boca, porque quem havia de ficar na mata com fome durante um mês? Desertavam logo. Então decidimos criar essa expectativa. Tacitamente, concordamos em fazer uma aliança com o MPLA de “não agressão” entre as partes, e, de facto, conseguimos convencê-los de que teríamos que beneficiar de 5 milhões de dólares. Mas, o Rui Augusto foi orientado para dar curvas e curvas e nunca assinamos nada. O Rui Augusto foi orientado para que ainda que nos dessem 20 milhões. Mas eles, do MPLA, também foram espertos. Não largavam nada, mas também nós não assinávamos nada. E andamos nisso. Ninguém recebeu nada, porque ninguém deu nada. Mas eles depois é que criaram essa armadilha, e espalharam por aí que recebemos 10 milhões de dólares. Mas é tudo mentira. Não se concretizou nada. Mas se dessem, o dinheiro não era deles. O pai do José Eduardo dos Santos era estivador do Porto, todos vieram com uma mão a frente e outra atrás.

O falecido pai de José Eduardo dos Santos não foi pedreiro?
Dizem que sim, mas que também foi estivador no Porto. Os nossos avôs dizem que era estivador. Mas foram eles próprios que criaram esse cenário de que recebemos milhões. Isso é próprio deles. Mas não recebemos nada, não fizemos nada disso. Quem falou primeiro sobre isso foi o jornal Folha 8 e depois foi o Fragoso que escreveu isso num livro. Ele também dizia que matei o Saydi Mingas. E eu disse que lhe metia em tribunal para provar isso. A pandemia é que atrasou tudo. Era sempre hoje, amanhã, eu tinha que vir de Malanje para aqui, pediam mais uma declaração disso e daquilo, e depois tinham que procurar o tal Fragoso que andava doente e já não aparecia muito, até que em Maio o homem morreu. Mas, o Silva Mateus como fala a toa, vai aparecer porque eu vou dizer que ele não esteve preso em cadeia nenhuma, onde estiveram presos do 27 de Maio. Ele não era militar. Era sim, um agente de diligências, no fundo, um estafeta da Policia Judiciária. Não há ninguém que consegue dizer que esteve preso com o Silva Mateus, nem ele consegue dizer com quem esteve preso. Foi engraxar-se no MPLA para nos queimar, falar mal de mim e conseguiu a patente de brigadeiro sem ser militar. Não é possível que tenha sido, porque eu ainda há dias estive com uns amigos e recordamos que antes das eleições de 2012, promoveu-se um grande jantar na Casa 70 de antigos combatentes de várias unidades das FAPLA que andaram por aí, e eu estive lá, participei e muita gente, o Patonho, o Menha Muxingo, irmão do Tino Cabuata, esse assassino, e apareceu um tal general Tavares que já foi presidente da Comissão Administrativa de Luanda, que disse que era comissário político de Luanda. Eu perguntei de onde? De Luanda? E o Patonho e outros admirados, olhando para mim, disseram-lhe que eu era o comissário chefe e se ele não te conhece é porque você não era. E eu disse-lhe: “Então eu estava na Direcção Política, conhecia todas as unidades, fazia visitas de trabalho todas as semanas e não o conheço”? O Menha Muxingo, que era da Segurança, o Patonho, o Disciplina, todos disseram-lhe que eu era o comissário-chefe, e questionaram-lhe porquê que eu não o conhecia se ele era comissário político? É claro que não o conheci, porque não era comissário. Os comissários políticos tinham um papel preponderante nas Forças Armadas. Depois do comandante, a segunda figura era o comissário e eu todas as semanas andava por todas as unidades.

Aliás o Songa, em recente entrevista a rádio MFM, foi bem expressivo sobre isso…
Sim! Foi bem expressivo.

Foi por isso que também se safou, porque conhecia todos os efectivos e era conhecido por todos…
É verdade. Porque naquela altura ele estava muito alheio à tudo, porque ele saiu do aeroporto para casa. Porque se ele estivesse ido para casa da mãe, receberia a informação de que os irmãos já estavam presos. O Gentil e o outro mais novo, cujo nome não me recordo…

Era o Gigi, meu amigo de infância…
Ahhhh… tão novo, cerca de 19/20 anos. Enfim!

Luís dos Passos quer dizer mais alguma coisas?
Não acredito nessa reconciliação que se está a fazer. A nossa reconciliação deveria ser como a que ocorreu na África do Sul, com uma Comissão da Verdade, onde houvesse uma espécie de catarse, em que os carrascos expressariam às vítimas o que faziam, como se vangloriavam com esses feitos; virem publicamente dizer o que fizeram, e não esconderem-se no pedido de perdão feito pelo Presidente da República. Há um individuo que não se identificou que disse, numa mensagem que está a correr pelas redes sociais, que sabe onde estão enterrados os comissários da DISA. Eles devem vir publicamente, de coração aberto, pedir perdão por isso. É como se estivessem a tirar um peso, como aconteceu na África do Sul. Eles próprios precisam de tirar esse peso de dentro deles. Eles agora estão todos escondidos no pedido de perdão do Presidente da República, João Lourenço. Eu, pelo menos, não sinto nada. Por outro lado, nós continuamos a ser estigmatizados, ostracizados. Eu, pelo menos já me libertei disso há muito tempo. Não devo nada, não tenho nada, mas isso magoa de certa forma, porque até os filhos questionam se matamos muita gente nessa figura de “fraccionista” e lá temos que explicar tudo o que se passou. E os que de facto mataram andam por aí. Mas esse estigma continua aí. Por exemplo, eu não sou general porque João Lourenço continua, pessoalmente, a impedir. Ele é que diz, pessoalmente, ao Pedro Sebastião (ministro de Estado e Chefe da Casa Militar exonerado na sequência do escândalo do processo Caranguejo que envolveu altos oficiais da Casa Militar no desvio de elevadas somas e meios) que “ele não, ele não”pensando que ainda vou ganhar seja o que for com isso. Eu estou no nível da classe dos generais. Senão, não estaria no nível de Nito Alves e de outros que encabeçaram o 27 de Maio. Todos os anos, nessa data, eu recebo fotografias de edições do Jornal de Angola, onde estou como a quinta pessoa que era procurada. Mandam-me sempre isso. Depois, desce mais um bocado, está o Vicente Fortuna, a Sita Vales e eu. Depois noutra, eu e Nito Alves, estilizados com cabeças de cobras. Então, qual é a dúvida? O protagonismo foi criado involuntariamente, e não porque eu queria ser isso ou aquilo. Foram eles que me promoveram porque eu era um capitãozinho.

Trata-se, no fundo, de um pedido de perdão com mais vocação política do que um perdão efectivo, que envolve um sentimento sincero de reconhecimento que se cometeram excessos?
Ele continua rancoroso. Acho que quem o ajudou a fazer esse pedido de perdão foi a mulher, que também esteve presa, apesar de não assumir que foi torturada. Mas muita gente já disse isso publicamente, e tenho amigos e indivíduos com quem militei no partido que estiveram também presos na cadeia de São Paulo, que dizem que ela sofreu muito. Em quatro meses de prisão, foi de entre as mulheres, aquela que sofreu muito. Mandavam ela limpar o chão completamente nua, coisas assim… Não sinto que esse pedido de perdão seja sincero. Não sinto! Vamos andando por aqui. Há pessoas com quem tinha boa relação, que depois desse pedido de perdão de João Lourenço já não atendem o telefone, porque essas mensagens estão a correr nos grupos de WhatsApp e eles também estão todos lá. É o caso do Whadijimbi. É meu compadre, e há dias tentei ligar para ele, três vezes, e já não atendeu. Isso porque eu mandei-lhe uma mensagem em que o Makuta Nkondo fala dele. E a filha dele, que é minha sobrinha, ouviu e pronto, deve estar a questionar-se sobre o papel do pai em tudo isso. Faltou é falar é do outro, marido da minha prima, o Lito Pinto de Andrade. Ele também foi muito mau. Vamos esperar que tudo isso melhore um dia. Vamos ter fé! Mas não há dúvida que se eu fosse mais novo e estivesse de novo na mata… não sei… Mas, continuo a pensar meu caro, que o país só está assim por culpa do Savimbi. A UNITA funcionava como contrapoder, como alternativa. Sempre foi a segunda força no país, mesmo quando andava na mata. O MPLA não podia ir para Benguela sem saber se a UNITA estava lá. Para Malanje idem… por todo o país. Ninguém andava…

Quer dizer que não soube tirar o devido proveito desse seu posicionamento de força?
Sim! não tirou proveito. Foi estúpido… estúpido… estúpido. Ao fazer a guerra que fez, pela teoria que dominava, sabia que não era possível vencer um exército regular. Não deveria forçar tanto a barra. Para quê? Para morrer como morreu? O país que já não estava bom, ficou pior depois de 1992. Os gatunos que já estavam instalados fizeram pior. Até 1991, publicamos num artigo, uma cópia de uma ordem de transferência de 100 mil dólares para uma conta de José Eduardo dos Santos. Publicamos no nosso jornal “O Renovador” mas, como no da UNITA tinha maior abrangência, demos também a ela. Naquela altura, pagamos 100 dólares por esse documento, onde havia um despacho de José Eduardo dos Santos para um tal Victor (não me lembro se é Alves) a orientar a transferência desse dinheiro proveniente da venda de petróleo. Era já desvio de dinheiro, mas depois de 1992 é que eles fizeram e desfizeram. Com a guerra, Kopelipa e mais uns tantos a comprar armas, e aí é que se fizeram. Eu ainda fui à festas do Higino Carneiro e do Nandó, da “Chapa dos 50”, de comemoração quando atingiram a posse de 50 mil dólares. Depois passou para 100, e quando chegou aos 500 mil pararam, para não darem conta publicamente que estavam a ter muito dinheiro. Mas até 1992 não havia milionários assim. Por isso é que digo que Savimbi foi culpado, porque não deveria ter levado essa guerra até ao extremo. Ele deveria ter esperado que ganhasse por via de eleições controladas, porque ninguém controla nada. Imagina que em tempo de eleições, nas zonas que eles controlavam, os homens tinham fome e estavam dependentes da comida que o MPLA enviava ou levava para os seus homens. Assim, não é possível. Com tanto dinheiro que eles tinham. Para mim, o nosso grande azar começou aí.

in Kesongo

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